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17.9.11

Delitos e Deleites









Amor
com
fusão



















Giovani Baffo


9.9.11

Na rua

Mais um longo dia na terra da garoa.
Hoje fez uma semana desde que voltei a viver aqui.
Entregar projeto na secretaria da cultura, comprar lentes de contato, rever um dos irmãos da vida e depois comprar umas coisas na Paulista.

Tem sido engraçada a sensação de estar em São Paulo com tempo.
Na quarta-feira, saí de um ensaio e antes de pegar o metrô resolvi ver uma exposição na FIESP (obras do Nelson Leirner, recomendo fortemente). Hoje, na rua, parei por uns 10 minutos para ver uma menina praticando umas manobras de patins.
Estou me dando mais tempo. Não há porque ter pressa. Continuo andando rápido (algo que geralmente incomoda quem me acompanha), mas com mais calma.

Depois de encontrar as coisas que procurava, quando já estava indo embora, perto da estação Brigadeiro (indo em direção à Saúde) pensei: Vou andar um pouco mais, arejar a cabeça, quando eu achar que já deu, pego um busão. Acho que o Nietzsche que disse “Só confio nas idéias que tenho andando”.
Sempre gostei de andar (hábito que havia sido trocado por andar de bicicleta), e esse trecho me agrada além de ser muito familiar.

Bem, passada a estação Ana Rosa comecei a esboçar uma letra de música na cabeça e resolvi gravar umas idéias no meu Mp3 Player.

Foi quando um cara que vinha da direção oposta começou a alterar sua trajetória pra se aproximar de mim. Ele trazia um papel na mão.
“Oi cara, por favor, eu não vou te pedir dinheiro nem tentar roubar teu celular”
Beleza, nem é um celular, é um gravador. Eu tava gravando umas coisas enquanto andava
“É a melhor coisa que cê faz, se eu tivesse um desse já tinha escrito um livro.”
Foi assim que Carlos Eduardo “Dinamite” entrou na minha vida.

Morador de rua, encabeçava um grupo de moradores de rua que havia se dissolvido após um ataque de skinheads em julho. Trabalhava catando metal, mas teve seu carrinho confiscado pela polícia recentemente. Desde julho havia passado por outros bairros e cidades e agora estava sem grana morando na Zona Leste numa casa abandonada. Ele havia saído pensando em ficar perto de um mercado para pedir que pessoas comprassem algumas coisas para ajudá-lo.
Ele trazia uma listinha, anotada num papel de bar com os itens:
Sabão em Pó, Masso de velas, Arroz, Macarrão, Ovos e Leite em pó.
Resolvi ir com ele até o mercado ali perto comprar umas coisas. Foi quando perguntei o nome dele, me apresentei e falei pra ele sobre como algumas pessoas acham que Cauê é apelido de Carlos Eduardo. Ele me contou que apelido dele, “Dinamite”, veio por ele gostar muito do Malcom X e por estar sempre envolvido em lutas pelos direitos sociais.
Contou sobre o ataque dos skinheads e sobre a entrevista que deu. E disse para eu procurar na internet pra eu ver que não era mentira, que eu tava "ajudando uma pessoa de verdade". (http://noticias.bol.uol.com.br/brasil/2011/07/05/skinheads-presos-na-zona-sul-de-sp-queriam-matar-dizem-vitimas.jhtm)

Ele disse como havia superado a depressão e encontrado alegria de viver na rua com a comunidade que ele havia formado (17 pessoas segundo ele), como eles cozinhavam na rua com latas de óleo (e a vez que ele acidentalmente explodiu um desodorante spray), como ele ensinava o pessoal com menos tempo de rua a botar uns papelões pra isolar o frio. Contou que ele e um camarada, o Samuel, tinham gasto R$170 no carrinho pra pegar metal (“Tipo um desses que usam pra vender cerveja, mas maior, com umas rodonas assim ó...”)
O carrinho foi levado por guardas do projeto Limpeza Urbana (acho que é esse o nome). Parecido com o Tolerância Zero, de Campinas – dá sumiço em moradores de rua ou pelo menos complica suas vidas.
Ele e o Samuel já tinham ido pra Brasília (Pensaram assim: o Legião Urbana e
várias outras bandas legais são de Brasília, lá deve ser um lugar legal pra morar, com condições boas) depois pra Goiânia, e quebraram a cara nas duas vezes. Agora, de volta à São Paulo, eles haviam se separado.
Ele me mostrou o cobertor que sempre leva na mochila (“Nunca se sabe, já passei muito frio nessa vida”)

No mercado fomos pegando as coisas.
Ele: “Pega o mais barato, por favor”
Pegamos o sabão em pó e ele disse “pô, agora tenho como lavar umas roupas, é o básico pra eu conseguir ir numa entrevista de emprego”
Velas
“To numa casa abandonada, não tem luz, água”
Tem uns fósforos?
“Pô... não tem não...”
Pega aí, vamos levar.
Depois
“Posso te pedir pra trocar uma das coisas?”
Claro.
“Posso trocar o macarrão por barbeador?”
Opa, borá lá.
“Aí fico melhor, vou fazer umas entrevistas de emprego. Cara eu te peço perdão por estar tendo que pedir isso”
Cara, relaxa.
“Cara, você pode comprar uma fruta?
Claro, do que que você gosta?
“Só uma manga, já seria lindo”

Chegamos no caixa. Ele sem saber direito como agradecer e eu meio sem saber como demonstrar que tudo bem. Olhei pras coisas tentando raciocinar se eu podia ajudar mais. Perguntei se ele tinha um sabonete.
“Não tenho nem escova de dente”.
Então peraí.
Fui peguei uma escova, uma pasta e um sabonete. Voltei.
“Cara, pra não te deixar constrangido, acho que eu vou esperar lá fora”
Não precisa.
“Cara, é que eu to meio mal, vou ali fora tomar um ar”
E foi até a saída, com a cabeça visivelmente cheia.
R$40,15 depois, saí para encontrá-lo sentado na calçada do lado do mercado. Sentei na frente dele com as sacolas.
“Cara, perdão. É que eu fiquei transtornado com isso de ficar falando sobre como perdi as pessoas que eram minha família. Perdi meu carrinho que era meu sustento e agora estou nessa situação tendo que pedir. Isso mexe com a gente. Deixa a gente se sentindo mal. Perdão por eu ter que te pedir essas coisas”
Ele me pedia perdão por estar sem trabalho, por estar pedindo.
Ele pediu perdão. Eu disse obrigado.

“Tem hora que a gente não sabe o que fazer nessa condição”
Por mais que eu diga que imagino, ou entendo, tudo que eu posso dizer é pra você ter força. Usa essa ajuda que eu to dando pra se fortalecer e ir atrás de algo pra seguir em frente.
“É... é isso mesmo. Força.”
Nos cumprimentamos. Mãos cruzadas.
Conversamos mais um pouco e depois fomos cada um para um lado.

...

Penso em outras pessoas que cruzaram meu caminho. O homem de paletó e bons sapatos.
O cara do texto abaixo, escrito em 21 de fevereiro:

1 da manhã. Chegando em casa de um trabalho. Estou cansado.
E o morador de rua revira o lixo do meu vizinho. Ao entrar já vou repassando na cabeça o que tenho na cozinha pra oferecer para o cara. Só passa pela minha cabeça um pacote de bolachas. Vou pegar e ofereço: Maluco, cê qué um pacote de bolacha? Ô irmão, não ouvi peraí (se aproxima) Que foi? Qué umas bolachas? Ôô brigado irmão. Me fala um negócio, você num tem aí uma garrafinha de água gelada pra me arranjar? Vixi, tem água normal, a gente não gela água aqui. Pô, beleza é que eu tenho uma aqui que tá quente, mas valeu irmão. Magina, boa noite aí. Boa semana pra você. Esqueci de oferecer pra trocar a água do cara, pelo menos. Outro dia o mesmo cara tava passando e pediu justamente pra trocar a água da garrafinha que ele tinha
Fui tomar banho, penso se o cara tem onde dormir e porque um dia não convido ele pra entrar? Penso também no risco para com nossas posses. Idiota. Isso ainda vem antes do ser humano...

Uns 20 minutos depois ele passa de novo, to na sala mas tem umas pessoas na “varanda” de casa. Ele: Ô, deixa eu perguntar uma coisa, vocês têm uma pontinha? Claro, diz um camarada e vai buscar. Enquanto isso ele encontra outro interlocutor e diz: arranjei ali um guaraná pra tomar com a bolacha que ta aqui (ergue orgulhosamente uma pet quase vazia com uma mão enquanto mostra uma bolsa com a outra). Aí uns caras vieram me chamando, saí vagabundo, drogado, aí fui saindo, os cara vêm arrumá confusão porque ta em três, mas  faço que nem minha irmã fala, pra que arranja encrenca com os outros?, vo indo embora. Se os cara me seguem ali até o morro, aí quem arranja encrenca são eles. (volta a ponta) Valeu, irmão, boa noite pra vocês.

Um dia será que eu vou embora?
Sempre me fascinam as histórias dos andarilhos. Dos sem teto.
Me sinto um merda!

Mas sigo preso
Não caibo em mim. É uma coisa. Não tenho palavras direito. Só quero ir embora.

...


Tem um lado que diz “Você gastou a grana pra deixar sua consciência limpa”

Se fosse isso eu devia ter ficado alegre depois, não? Orgulhoso? Só fiquei mal.

Por que ajudei ele, não outro?
Porque não comprei o macarrão além da gilete?
Porque não marquei um jeito para encontrá-lo?
Porque não falei pra ele da ocupação onde uma camarada meu realiza uns projetos artísticos?
Por que não fui conhecer o lugar onde ele tava?
Por que não dei minha garrafinha d’água?
Por que não perguntei se ele tinha papel higiênico?


O que fazer por um homem nesse estado ou num estado pior?
O que fazer?
O que?