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Pensamento

Esse é um espaço onde organizo algumas referências de vida:

- Trechos do livro "Ame e de Vexame" (Roberto Freire)
- "Notas sobre a experiência e o saber da experiência" (Jorge Larossa Bondia)
- "O Narrador" (Walter Benjamim)




Ame e dê vexame

Roberto Freire


Declaração do amante anarquista: porque eu te amo, tu não precisas de mim. Porque tu me amas, eu não preciso de ti. No amor, jamais nos deixamos completar. Somos, um para o outro, deliciosamente desnecessários.


Segue abaixo, a transcrição de alguns 
trechos das primeiras páginas do livro

 Porque de amor se trata, vou contando logo como vivo o meu amor, o que me acontece quando sinto o seu amor, o que nos encanta quando se faz anarquista nosso amor.


Mas escrever sobre o amor é difícil, porque essa palavra nem sempre designa realmente amor, sendo mais frequentemente usada como superlativo do afeto que se pode sentir por uma pessoa.
Aliás, isso acontece porque a maioria, da forma como se vive hoje, não consegue amar realmente e supõe ser o amor o gostar intenso e doloroso que lhe foi possível sentir por alguém.
O mais grave, entretanto, é o fato de as pessoas acreditarem tratar-se verdadeiramente de amor o gostar desmesurado. Em sua vida incompleta e insatisfatória, o possível mas difícil amor pelos outros é substituído pela afeição e dependência às coisas materiais.
No falar cotidiano dos franceses, para lembrar um exemplo, o problema ressalta ainda mais que entre nós, de fala portuguesa. Na França (aprendi com o poeta Leo Ferre), ao declarar verdadeira paixão por alguém, deve-se dizer assim, sem medo algum de pleonasmo lingüístico ou amoroso:
_ Jet’aime d’amour!
Pelo sim, pelo não, como já não quero mais cometer equívocos em minha eventuais e ainda possíveis paixões, adotei o procedimento semântico gaulês quando estou amando de verdade e em português:
_ Eu te amo de amor!

Entre muitas causas, tanto da transformação semântica que sofre a palavra amor – dificultando a comunicação na relação afetiva – quanto da modificação essencial do sentimento amoroso por causas da natureza psicológica, social e política nas sociedades contemporâneas, uma se destaca logo de início: a que faz as pessoas tomar vocábulos, eles mesmos (a palavra falada ou escrita, enfim, comunicada) como sendo os próprios sentimentos ou as coisas que representam simbolicamente.
Considero alienação o esforço que se faz para considerar qualquer forma facilitação pela fala (apesar de sua decisiva influência no processo civilizatório) sempre um avanço na expressão e na comunicação da afetividade humana. É preciso lembrar que a fala pode também ser um retardo, bloqueio ou transformação da naturalidade com que o homem pode manifestar seus sentimentos e sua criatividade espontânea, através de processos corporais.

A tecnologia também, que seria um aperfeiçoamento e uma ampliação na comunicação de nossa vida intelectual e afetiva, está levantando questões sérias que reclamam estudos mais aprofundados e uma atitude crítica tanto no campo da ciência quanto no da política.
As mais importantes conquistas tecnológicas a partir da Revolução Industrial, sobretudo no campo das pesquisas eletrônicas, termonucleares e da informática, exerceram decisiva e aparentemente irreversível influência no surgimento e fortalecimento do capitalismo burguês e das demais formas contemporâneas de autoritarismo do Estado.
Passou, assim, essa tecnologia a atuar diretamente na formação cultural dos povos, de modo a alterar e deformar conceitos básicos sobre o valor e o significado da vida.

Uma das conseqüências direta desses fatos foi o desvirtuamento da linguagem, por efeito da influência semântica também autoritária, porque fez de cima para baixo. Duas palavras, especialmente, tiveram seu significado natural alienado, e tornou-se praticamente impossível o resgate da sua natureza original: amor e liberdade.
O mesmo acontece, por idêntico mecanismo, mas em sentido inverso quando o autoritarismo, por via psicológica e pedagógica, torna irreconhecível para as pessoas o sentimento que gerou essas duas palavras. Podemos ainda pronunciá-las, porém não é mais possível conhecermos o seu natural sabor.

Apesar de tudo, a necessidade desses sentimentos não desaparecerá jamais. O homem pode ser confundido, não compreendê-los claramente, não saber direito como exprimi-los corretamente, mas sempre poderá se conscientizado de que os sentimentos não são as palavras que os designam e tampouco deixarão de existir apenas porque bloqueados e alterados em seus mecanismos naturais de expressão e de comunicação.
De alguma forma, enquanto permanecer vivo e animado pelo desejo de sobrevivência, o homem vai encontrar um meio de fazer sentir por si mesmo e pelos outros o seu amor, como é seu amor, o que deseja o seu amor.
Só que, para isso, precisa viver uma certa regressão antropológica cultural, desistindo do uso exclusivo das palavras, da linguagem verbal, passando a comunicar o seu amor através das expressões corporal, gestual, facial e, sobretudo, por meio da poesia emergente do fato de estar apaixonado, que produz profunda mais indecifrável comunicação. Apenas os amantes podem captar e compreendê-las, quando se amam de amor



1ª Atualização

         (...)

         Acho que sempre soube amar de verdade, naturalmente, assim como se respira. Certamente por isso sobrevivi. Mas nem sempre pude falar do meu amor com a clareza e a sinceridade com que faço agora que fiquei velho. Isso se deu ao descobrir na Soma quem, de fato, eu sou, e depois que ela me ensinou a adquirir a força necessária para adequar-me ecologicamente com relação ao mundo.
         Quando eu era mais jovem tinha medo de me entregar totalmente ao amor porque isso me fazia parecer frágil, vulnerável, sensível demais, facilmente dominável e usável. Sobretudo, eu tinha vergonha de parecer romântico, sei lá por quê. Assim, toda vez que me apaixonava, ficava romântico e isso me enchia da sensação do ridículo. Desgraçadamente, naquela época eu ainda não sabia ser um romântico por opção profunda, tão profunda que eu próprio não conseguia me dar conta disso. E lutava para enfrentar e não permitir a exteriorização do que considerava ser minha tara, apavorado de dar vexames. Porém, felizmente, acabei podendo dar todos os vexames possíveis a que tinha direito no correr dos amores e da vida.
(...)
         Custou-me muita dor, solidão e desespero aprender que sentir amor é uma potencialidade vital minha, é produção criativa da pessoa que sou e, para amar, dependo apenas de mim mesmo. E sua expressão e comunicação são produtos da liberdade pessoal e social conquistada.
         Em minha inocência e ignorância, eu atribuía a algumas pessoas o poder de liberar, produzir, fazer, exercer e comunicar o amor em mim e de mim. Esse amor pertencia, pois, exclusivamente a essas pessoas, ficando eu delas dependente para sempre. Se, por alguma razão me deixassem ou não quisessem mais produzi-lo em mim, eu secava de amor e – o que é pior – ficava em seu lugar, na pessoa e no corpo, uma sangrenta ferida, como a de uma amputação, que não cicatrizaria jamais.
         Certamente foi isso que fez Shakespeare levar Romeu e Julieta à morte, bem como Goethe fazer Werther se matar e, conseqüência, fez muitos de seus leitores tentar suicídio. Não tenho a menor dúvida de ter convencido meus personagens Cléo e Daniel a optar pelo suicido quando lhes provei ser impossível o amor total na sociedade burguesa.
         Entretanto, algo em mim, já naquela época, fazia-me duvidar dessa tese, pois, após tomar o medicamento que iria matá-los, tentam o amor pela última vez. Para sua grande surpresa, o amor volta inteiro, completo. Libertando-se através do suicídio, da vida social burguesa, redescobrem o sentimento essencial. O seu amor estava lá, neles e entre eles, pronto e todo, intocado. Começam a pedir socorro, pois já não querem mais livrar-se da vida. Porém, estavam nus, batendo nas portas dos apartamentos. Em vez de chamar a ambulância (eles só diziam a palavra amor), os moradores do prédio pedem a ajuda da polícia. Cléo e Daniel morrem na delegacia.


         Depois de me matar assim tantas vezes, hoje eu não me mato mais. Sei que a dificuldade para a realização plena do amor entre as pessoas não é um problema do amor em si, mas do ambiente social, dos preconceitos, do moralismo laico ou religioso, do autoritarismo, da luta de classes, dos interesses econômicos e políticos.
         Valeria à pena fazer um estudo nesse sentido, investigando as obras literárias que tornaram célebres alguns amantes como Romeu e Julieta, vitimados por conflitos de interesses políticos e econômicos que tornaram inimigas suas famílias, os Montéquio e os Capuleto. Por exemplo: Paulo e Virgínia, Peleas e Melissande, Daphnis e Chloé, Tristão e Isolda, inclusive os nossos Marília e Dirceu, Ceci e Peri, Maria Bonita e Lampião, Riobaldo e Diadorim.

         Quando o amor acaba por ele mesmo, quando existe incompatibilidade entre as personalidades dos amantes, suas reações à perda não chegam nunca ao desespero trágico dos desfechos produzidos de fora pra dentro, do social para o pessoal, do desamor geral contra o amor possível.
         Os amantes sabem que só se ama por inteiro, ou então o que estão fazendo não é amor, mas uma associação de interesses mútuos, um negócio. Além disso, quando se ama, não se está pensando em segurança, duração, controle, posse, pois isso corresponde à forma com que o autoritarismo capitalista familiar ou o Estado se expressa no plano pessoal e afetivo. Se sou libertário, desejo que tanto eu quanto meu parceiro vivamos o amor em liberdade, na emoção, no espaço e no tempo. É o amor em si mesmo que comanda a intensidade, a beleza, a forma e a duração do nosso amor, em cada um e entre os dois, jamais o contrário.


2ª Atualização


(...)
Uma das mais eficientes maneiras de diminuir nosso sofrimento pelas dificuldades em exprimir e comunicar verbalmente o amor direta e substantivamente é podermos adjetivá-lo à vontade e, com isso, atenuarmos sua força e o travestirmos de roupagens tão variadas e diversificadas que, longe de sua crueza e de sua nudez autênticas, o amor acaba sendo mais a máscara do que o mascarado, ou - o que é mais trágico -, às vezes, a máscara apenas disfarça e encobre a ausência do que devia mascarar.
Amor paterno, amor materno, amor fraterno, amor de parentes, amor filial, amor de namorados, amor de esposos, amor de amantes, amor de amigos, amor de companheiros, amor de sócios, amor de correligionários, enfim, todas essas e muitas outras formas de amar, em verdade, variam sobretudo em função da sua carga afetiva, sensual e sexual, dos compromissos, das obrigações, das dependências consanguíneas, legais, sociais, financeiras e políticas.
Por muito tempo a adjetivação do amor me confundia, e cheguei mesmo a suspeitar de que cada um desses amores era de qualidade realmente diversa no conteúdo, na energia, como o era na forma e no objetivo.

Preso ao conceito clássico e autoritário de que o amor é uma relação de troca complementar, ou seja, sistema de vasos comunicantes, eu deveria amar mais a pessoa que suprisse minhas carências pessoais em todos os planos, ficando, assim, atada indissoluvelmente a ideia de atração, amor e complementação à de gratidão e dependência.
A ideia de que amar podia ser coisa completamente diferente deixou-me tão perplexo e apavorado porque, dentro do código de ética e de normalidade que regula a forma clássica de amar, qualquer violação dos limites de cada uma dessas maneiras adjetivadas de amar é punida com classificação de tipo pejorativa, marginalizante e alienante, podendo até ser caracterizadas como perversões patológicas ou transgressões criminosas.

Acho que consegui exemplificar bem essa situação em um de meus romances, quando um jovem pede amor a um homem maduro, amor substantivo que ele, jovem, sabe exprimir e comunicar de forma crua e nua, porque é um protomutante, é uma pessoa que veio nasceu no futuro e não conhecia as normas de amar vindas do passado. Então o homem, maduro, atraído e fascinado pela originalidade e beleza do jovem, mas em pânico e preso aos preconceitos de sua formação burguesa, comportava-se assim, no diálogo com o rapaz, que naquele instante lhe pedia proteção:

- Proteger como?
- Com o teu amor.
- Meu amor?
- O teu amor por mim... o teu amor pelo meu amor por você!
Nos olhávamos de frente, tensos os dois. Eu estava perplexo e indignado. Amor por um menino? Amor de pai? Amor de amigo? Amor de irmão? Amor de amante? Eu pensava e exprimia as interrogações em palavras orais. Ele não respondeu a nenhuma.
- Por que você não responde?
- Porque eu não sei, porque eu não quero nenhum desses tipos de amor de que você falou!
- E o que você quer, então?
- Esse aí...
E tocou meu peito com a ponta do dedo. Relaxou a tensão nele. Sorriu e continuou tocando meu peito com a ponta do dedo.
- Todo esse aí...

Queria mostrar com esse diálogo ficcional o que considero mais importante para alcançar o amor libertário. Quando não se consegue amar com o amor semente, tem-se sempre muita dificuldade em aceitar que o amor vive de uma só e única energia que materializa esse sentimento de forma natural. Acabamos, assim, por nos perder e desorientar em face das formas variadas com que socialmente ele se apresenta como raiz, como caule, como folhas, como flores e como frutos. Os anarquistas aprendem a amar mais a possibilidade de ama que o próprio amor e os nossos objetos de amor. Possibilidade de amar, em anarquismo somático, significa liberdade.










Notas sobre a experiência e o saber de experiência [*]
Jorge Larrosa Bondía



No combate entre você e o mundo, prefira o mundo. 

(Franz Kafka)



Costuma-se pensar a educação do ponto de vista da relação entre a ciência e a técnica ou, às vezes, do ponto de vista da relação entre teoria e prática. Se o par ciência/técnica remete a uma perspectiva positivista e reificadora, o par teoria/prática remete sobretudo a uma perspectiva política e crítica. De fato, somente nesta última perspectiva tem sentido a palavra "reflexão" e expressões como "reflexão crítica", "reflexão sobre a prática ou na prática", "reflexão emancipadora", etc. Se na primeira alternativa as pessoas que trabalham em educação são concebidas como sujeitos técnicos que aplicam com maior ou menor eficácia as diversas tecnologias pedagógicas produzidas pelos cientistas, pelos técnicos e pelos especialistas, na segunda alternativa estas mesmas pessoas aparecem como sujeitos críticos que, armados de distintas estratégias reflexivas, se comprometem, com maior ou menor êxito, com práticas educativas concebidas na maioria das vezes sob uma perspectiva política. Tudo isso é suficientemente conhecido, posto que nas últimas décadas o campo pedagógico tem estado separado entre os chamados técnicos e os chamados críticos, entre os partidários da educação como ciência aplicada e os partidários da educação como praxis política, e não vou retomar a discussão.
O que vou lhes propor aqui é que exploremos juntos outra possibilidade, digamos que mais existencial (sem ser existencialista) e mais estética (sem ser esteticista), a saber, pensar a educação a partir do par experiência e sentido. O que vou fazer a seguir é sugerir um certo significado para estas duas palavras em distintos contextos, e depois vocês me dirão como isto lhes soa. O que vou fazer é, simplesmente, explorar algumas palavras e tratar de compartilhá-las.
E isto a partir da convicção de que as palavras produzem sentido, criam realidade e, às vezes, funcionam como potentes mecanismos de subjetivação. Eu creio no poder das palavras, na força das palavras, creio que fazemos coisas com as palavras e, também, que as palavras fazem coisas conosco. As palavras determinam nosso pensamento porque não pensamos com pensamentos mas com palavras, não pensamos a partir de uma suposta genialidade ou inteligência, mas a partir de nossas palavras. E pensar não é somente "raciocinar" ou "calcular" ou "argumentar", como nos têm sido ensinado algumas vezes, mas é sobretudo dar sentido ao que somos e ao que se nos acontece. E isto, o sentido ou o sem-sentido é algo que tem a ver com as palavras. E, portanto, também tem a ver com as palavras o modo como nos colocamos diante de nós mesmos, diante dos outros e diante do mundo em que vivemos. E o modo como agimos em relação a tudo isso. Todo mundo sabe que Aristóteles definiu o homem como zôon lógon échon. A tradução desta expressão, porém, é muito mais "vivente dotado de palavra" do que "animal dotado de razão" ou "animal racional". Se há uma tradução que realmente trai, no pior sentido da palavra, é justamente essa de traduzir logos por ratio. E a transformação de zôon, vivente, em animal. O homem é um vivente com palavra. E isto não significa que o homem tenha a palavra ou a linguagem como uma coisa, ou uma faculdade, ou uma ferramenta, mas que o homem é palavra, que o homem é enquanto palavra, que todo o humano tem a ver com a palavra, se dá em palavra, está tecido de palavras, que o modo de viver próprio desse vivente, que é o homem, se dá na palavra e como palavra. Por isso atividades como considerar as palavras, criticar as palavras, eleger as palavras, cuidar das palavras, inventar palavras, jogar com as palavras, impor palavras, proibir palavras, transformar palavras, etc. não são atividades ocas ou vazias, não são mero palavrório. Quando fazemos coisas com as palavras, do que se trata é de como damos sentido ao que somos e ao que nos acontece, de como correlacionamos as palavras e as coisas, de como nomeamos o que vemos ou o que sentimos, e de como vemos ou sentimos o que nomeamos.
Nomear o que fazemos, em educação ou em qualquer outro lugar, como técnica aplicada, como praxis reflexiva ou como experiência dotada de sentido não é somente uma questão terminológica. As palavras com que nomeamos o que somos, o que fazemos, o que pensamos, o que percebemos ou o que sentimos são mais do que simplesmente palavras. E, por isso, as lutas pelas palavras, pelo significado e pelo controle das palavras, pela imposição de certas palavras e pelo silenciamento ou desativação de outras palavras, são lutas em que se jogo algo mais do que simplesmente palavras, algo mais que somente palavras.
1. Começarei com a palavra "experiência". Poderíamos dizer, de início, que a experiência é, em espanhol, "o que nos passa". Em português se diria que a experiência é "o que nos acontece"; em francês a experiência seria "ce que nos arrive"; em italiano "quello che nos succede" ou "quello che nos accade"; em inglês seria "that what is happening to us"; em alemão seria "was mir passiert".
A experiência é o que nos passa [1], o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que acontece, ou o que toca. A cada dia se passam muitas coisas porém, ao mesmo tempo, quase nada nos acontece. Dir-se-ia que tudo o que se passa está organizado para que nada nos aconteça . Walter Benjamin, em um texto célebre, já observava a pobreza de experiências que caracteriza o nosso mundo. Nunca se passaram tantas coisas, mas a experiência é cada vez mais rara.
Em primeiro lugar pelo excesso de informação. A informação não é experiência. E mais, a informação não deixa lugar para a experiência, ela é quase o contrário da experiência, quase uma anti-experiência. Por isso a ênfase contemporânea na informação, em estar informados, e toda a retórica destinada a constituir-nos como sujeitos informantes e informados; a informação não faz outra coisa que cancelar nossas possibilidades de experiência. O sujeito da informação sabe muitas coisas, passa seu tempo buscando informação, o que mais o preocupa é não ter bastante informação; cada vez sabe mais, cada vez está melhor informado, porém com essa obsessão pela informação e pelo saber (mas saber não no sentido de "sabedoria", mas no sentido de "estar informado") o que consegue é que nada lhe aconteça. A primeira coisa que gostaria de dizer sobre a experiência é que é necessário separá-la da informação. E o que gostaria de dizer sobre o saber de experiência é que é necessário separá-lo de saber coisas tal como se sabe quando se tem informação sobre as coisas, quando se está informado. É a língua mesma que nos dá essa possibilidade. Depois de assistir a uma aula ou a uma conferência, depois de ter lido um livro ou uma informação, depois de ter feito uma viagem ou de ter visitado uma escola, podemos dizer que sabemos coisas que antes não sabíamos, que temos mais informação sobre alguma coisa, mas, ao mesmo tempo, podemos dizer também que nada nos aconteceu, que nada nos tocou, que com tudo o que aprendemos nada nos sucedeu ou nos aconteceu.
Além disso, seguramente todos já ouvimos que vivemos numa "sociedade de informação". E já nos demos conta de que esta estranha expressão funciona às vezes como sinônima de "sociedade do conhecimento" ou até mesmo de "sociedade da aprendizagem". Não deixa de ser curiosa a troca, o intercambialidade, entre os termos "informação", "conhecimento" e "aprendizagem". Como se o conhecimento se desse sob a forma de informação, e como se aprender não fosse outra coisa que não adquirir e processar informação. E não deixa de ser interessante também que as velhas metáforas organicistas do social, que tantos jogos permitiram aos totalitarismos do século passado, estejam sendo substituídas por metáforas cognitivistas, seguramente também totalitárias, ainda que revestidas agora de um look liberal e democrático. Independentemente de que seja urgente problematizar esse discurso que se está instalando sem crítica, a cada dia mais profundamente, e que pensa a sociedade como um mecanismo de processamento de informação, o que eu quero apontar aqui é que uma sociedade constituída sob o signo da informação é uma sociedade onde a experiência é impossível.
Em segundo lugar, a experiência é cada vez mais rara por excesso de opinião. O sujeito moderno é um sujeito informado que, além disso, opina. É alguém que tem uma opinião supostamente pessoal e supostamente própria e, às vezes, supostamente crítica sobre tudo o que se passa, sobre tudo aquilo de que tem informação. Para nós, a opinião como a informação se converteu em um imperativo. Nós, em nossa arrogância, passamos a vida opinando sobre qualquer coisa sobre que nos sentimos informados. E se alguém não tem opinião, se não tem uma posição própria sobre o que se passa, se não tem um julgamento preparado sobre qualquer coisa que se lhe apresente, sente-se em falso, como se lhe faltasse algo essencial. E pensa que tem que ter uma opinião. Depois da informação, vem a opinião. No entanto, a obsessão pela opinião também anula nossas possibilidades de experiência, também faz com que nada nos aconteça.
Benjamin dizia que o periodismo é o grande dispositivo moderno para a destruição generalizada da experiência. O periodismo destrói a experiência, sobre isso não há dúvida, e o periodismo não é outra coisa que a aliança perversa entre informação e opinião. O periodismo é a fabricação da informação e a fabricação da opinião. E quando a informação e a opinião se sacralizam, quando ocupam todo o espaço do acontecer, então o sujeito individual não é outra coisa que o suporte informado da opinião individual, e o sujeito coletivo, esse que teria que fazer a história segundo os velhos marxistas, não é outra coisa que o suporte informado da opinião pública. Quer dizer, um sujeito fabricado e manipulado pelos aparatos da informação e da opinião, um sujeito incapaz de experiência. E o fato de o periodismo destruir a experiência é algo mais profundo e mais geral do que aquilo que derivaria do efeito dos meios de comunicação de massas sobre a conformação de nossas consciências.
O par informação/opinião é muito geral e permeia também, por exemplo, nossa idéia de aprendizagem, inclusive do que os pedagogos e psicopedagogos chamam de "aprendizagem significativa". Desde pequenos até a universidade, ao largo de toda nossa travessia pelos aparatos educacionais, estamos submetidos a um dispositivo que funciona da seguinte maneira: primeiro é preciso informar-se e, depois, há que opinar, há que dar uma opinião obviamente própria, crítica e pessoal sobre o que quer que seja. A opinião seria como a dimensão "significativa" da assim chamada "aprendizagem significativa". A informação seria o objetivo, a opinião seria o subjetivo, ela seria nossa reação subjetiva ao objetivo. Além disso, como reação subjetiva, é uma reação que se tornou para nós automática, quase reflexa: informados sobre qualquer coisa, nós opinamos. Este "opinar" se reduz, na maioria das ocasiões, em estar a favor ou contra. Com isso, nos convertemos em sujeitos competentes para responder como Deus manda às perguntas dos professores que, cada vez mais, se parecem a comprovações de informações e a pesquisas de opinião. Diga-me o que você sabe, diga-me com que informação conta e exponha, em continuação, a sua opinião: esse o dispositivo periodístico do saber e da aprendizagem, o dispositivo que torna impossível a experiência.
Em terceiro lugar, a experiência é cada vez mais rara por falta de tempo. Tudo o que se passa, passa demasiadamente de pressa, cada vez mais de pressa. E com isso se reduz o estímulo fugaz e instantâneo, imediatamente substituído por outro estímulo ou por outra excitação igualmente fugaz e efêmera. O acontecimento nos é dado na forma de shock, do choque, do estímulo, da sensação pura, na forma da vivência instantânea, pontual e fragmentada. A velocidade com que nos são dados os acontecimentos e a obsessão pela novidade, pelo novo, que caracteriza o mundo moderno, impedem a conexão significativa entre acontecimentos. Impedem também a memória, já que cada acontecimento é imediatamente substituído por outro que igualmente nos excita por um momento, mas sem deixar qualquer vestígio. O sujeito moderno não só está informado e opina, mas também é um consumidor voraz e insaciável de notícias, de novidades, um curioso impenitente, eternamente insatisfeito. Quer estar permanentemente excitado e já se tornou incapaz de silêncio. Ao sujeito do estímulo, da vivência pontual, tudo o atravessa, tudo o excita, tudo o agita, tudo o choca, mas nada lhe acontece. Por isso a velocidades e o que ela provoca, a falta de silêncio e de memória, é também inimiga mortal da experiência.
Nessa lógica de destruição generalizada da experiência, estou cada vez mais convencido de que os aparatos educacionais também funcionam cada vez mais no sentido de tornar impossível que alguma coisa nos aconteça. Não somente, como já disse, pelo funcionamento perverso e generalizado do par informação-opinião, mas também pela velocidade. Cada vez estamos mais tempo na escola (e a Universidade e os cursos de formação do professorado são parte da escola) mas cada vez temos menos tempo. Esse sujeito da formação permanente e acelerada, da constante atualização, da reciclagem sem fim, é um sujeito que usa o tempo como um valor ou como uma mercadoria, um sujeito que não pode perder tempo, que tem sempre que aproveitar o tempo, que não pode protelar qualquer coisa, que tem que seguir o passo veloz do que se passa, que não pode ficar para trás, por isso mesmo, por essa obsessão por seguir o curso acelerado do tempo, este sujeito já não tem tempo. E na escola o currículo se organiza em pacotes cada vez mais numerosos e cada vez mais curtos. Com isso, também em educação estamos sempre acelerados e nada nos acontece.
Em quarto lugar, a experiência é cada vez mais rara por excesso de trabalho. Este ponto me parece importante porque às vezes se confunde experiência com trabalho. Existe um clichê segundo o qual nos livros e nos centros de ensino se aprende a teoria, o saber que vem dos livros e das palavras, e no trabalho se adquire a experiência, o saber que vem do fazer ou da prática, como se diz atualmente. Quando se redige o currículo, distingue-se formação acadêmica e experiência de trabalho. Tenho ouvido falar de uma certa tendência aparentemente progressista no campo educacional que, depois de criticar o modo como nossa sociedade privilegia as aprendizagens acadêmicas, pretende implantar e homologar formas de contagem de créditos para a experiência e para o saber de experiência adquirido no trabalho. Por isso estou muito interessado em distinguir entre experiência e trabalho e, além disso, em criticar qualquer contagem de créditos para a experiência, qualquer conversão da experiência em créditos, em mercadorias, em valor de troca. Minha tese não é somente porque a experiência não tem nada a ver com o trabalho, mas, ainda mais fortemente, que o trabalho, essa modalidade de relação com as pessoas, com as palavras e com as coisas que chamamos trabalho, é também inimiga mortal da experiência.
O sujeito modernos, além de ser um sujeito informado que opina, além de estar permanentemente agitado e em movimento, é um ser que trabalho, quer dizer, que pretende conformar o mundo, tanto o mundo "natural" quanto o mundo "social" e "humano", tanto a "natureza externa" quanto "a natureza interna", segundo seu saber, seu poder e sua vontade. O trabalho é esta atividade que deriva desta pretensão. O sujeito moderno é animado por uma portentosa mescla de otimismo, de progressismo e de agressividade: crê que pode fazer tudo o que se propõe (e se hoje não pode, algum dia poderá) e para isso não duvida em destruir tudo o que percebe como um obstáculo a sua onipotência. O sujeito moderno se relaciona com o acontecimento do ponto de vista da ação. Tudo é pretexto para sua atividade. Sempre está a se perguntar sobre o que pode fazer. Sempre está desejando fazer algo, produzir algo, modificar algo, regular algo. Independentemente de este desejo estar motivado por uma boa vontade ou uma má vontade, o sujeito moderno está atravessado por um afã de mudar as coisas. E nisso coincidem os engenheiros, os políticos, os industrialistas, os médicos, os arquitetos, os sindicalistas, os jornalistas, os cientistas, os pedagogos e todos aqueles que põem no fazer coisas a sua existência. Nós não só somos sujeitos ultra-informados, transbordantes de opiniões e super-estimulados, mas também sujeitos cheios de vontade e hiper-ativos. E por isso, porque sempre estamos querendo o que não é, porque estamos sempre em atividade, porque estamos sempre mobilizados, não podemos parar. E, por não podermos parar, nada nos acontece.
A experiência, a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque, requer um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que correm: requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço.
2. Até aqui, a experiência e a destruição da experiência. Vamos agora ao sujeito da experiência. Esse sujeito que não é o sujeito da informação, da opinião, do trabalho, que não é o sujeito do saber, do julgar, do fazer, do poder, do querer. Se escutamos em espanhol, nessa língua em que a experiência é o que nos passa, o sujeito da experiência seria algo como um território de passagem, algo como uma superfície sensível que aquilo que acontece afeta de algum modo, produz alguns afetos, inscreve algumas marcas, deixa alguns vestígios, alguns efeitos. Se escutamos em francês, onde a experiência é "ce que nous arrive", o sujeito da experiência é um ponto de chegada, um lugar a que chegam as coisas, como um lugar que recebe o que chega e que, ao receber, lhe dá lugar. E em português, em italiano e em inglês, onde a experiência soa como "aquilo que nos acontece, nos sucede", ou "happen to us", o sujeito da experiência é sobretudo um espaço onde têm lugar os acontecimentos.
Em qualquer caso, seja como território de passagem, seja como lugar de chegada ou como espaço do acontecer, o sujeito da experiência se define não por sua atividade, mas por sua passividade, por sua receptividade, por sua disponibilidade, por sua abertura. Trata-se, porém, de uma passividade anterior à oposição entre ativo e passivo, de uma passividade feita de paixão, de padecimento, de paciência, de atenção, como uma receptividade primeira, como uma disponibilidade fundamental, como uma abertura essencial.
O sujeito da experiência é um sujeito ex-posto. Do ponto de vista da experiência, o importante não é nem a posição (nossa maneira de pormos), nem a o-posição (nossa maneira de opormos), nem a im-posição (nossa maneira de impormos), nem a pro-posição (nossa maneira de propormos), mas a ex-posição, nossa maneira de ex-pormos, como tudo o que isso tem de vulnerabilidade e de risco. Por isso é incapaz de experiência aquele que se põe, ou se opõe, ou se impõe, ou se propõe, mas não se ex-põe. É incapaz de experiência aquele a quem nada lhe passa, a quem nada lhe acontece, a quem nada lhe sucede, a quem nada o toca, nada lhe chega, nada o afeta, a quem nada o ameaça, a quem nada ocorre.
3. Vamos agora ao que nos ensina a própria palavra experiência. A palavra experiência vem do latim experiri, provar [experimentar]. A experiência é em primeiro lugar um encontro ou uma relação com algo que se experimenta, que se prova. O radical é periri, que se encontra também em periculum, perigo. A raiz indo-européia é per, com a qual se relaciona antes de tudo a idéia de travessia, e secundariamente a idéia de prova. Em grego há numerosos derivados desta raiz que marcam a travessia, o percorrido, a passagem: peirô, atravessar; pera, mais além; peraô, passar através; perainô, ir até o fim; peras, limite. Em nossas línguas há uma bela palavra que tem esse per grego de travessia: a palavra peiratês, pirata. O sujeito da experiência tem algo desse ser fascinante que se expõe atravessando um espaço indeterminado e perigoso, pondo-se nele a prova e buscando nele sua oportunidade, sua ocasião. A palavra experiência tem o ex de exterior, de estrangeiro [2], de exílio, de estranho [3] e também o ex de existência. A experiência á a passagem da existência, a passage, de um ser que não tem essência ou razão ou fundamento, mas que simplesmente ex-iste de uma forma sempre singular, finita, imanente, contingente. Em alemão experiência é Erfahrung, que contém o fahren de viajar. E do antigo alto-alemão fara também deriva Gefahr, perigo e gefährden, pôr em perigo. Tanto nas línguas germânicas como nas latinas, a palavra experiência contém inseparavelmente a dimensão de travessia e perigo.
4. Martin Heidegger uma definição de experiência em que soam muito bem essa exposição, essa receptividade, essa abertura, assim como essas duas dimensões de travessia e perigo que acabamos de destacar: "...fazer uma experiência com algo significa que algo nos acontece, nos alcança; que se apodera de nós, que nos tomba e nos transforma. Quando falamos em 'fazer' uma experiência isso não significa precisamente que nós a façamos acontecer, 'fazer' significa aqui: sofrer, padecer, tomar o que nos alcança receptivamente, aceitar, a medida que nos submetemos a algo. Fazer uma experiência quer dizer, portanto, deixar-nos abordar em nós próprios pelo que nos interpela, entrando e submetendo-nos a isso. Podemos ser assim transformados por tais experiências, de um dia para o outro ou no transcurso do tempo".
O sujeito da experiência, se repassarmos pelos verbos que Heidegger usa neste parágrafo, é um sujeito alcançado, tombado, derrubado. Não um sujeito que permanece sempre em pé, ereto, erguido e seguro de si mesmo; não um sujeito que alcança aquilo que se propõe ou que se apodera daquilo que quer; não um sujeito definido por seus sucessos ou por seus poderes, mas um sujeito que perde seus poderes precisamente porque aquilo de que faz experiência dele se apodera. Por outro lado, o sujeito da experiência é também um sujeito sofredor, padecente, receptivo, aceitante, interpelado, submetido. Seu contrário, o sujeito incapaz de experiência, seria um sujeito firme, forte, impávido, inatingível, erguido, anestesiado, apático, autodeterminado, definido por seu saber, por seu poder e por sua vontade.
Nas duas últimas linhas do parágrafo, ".... Podemos ser assim transformados por tais experiências, de um dia para o outro ou no transcurso do tempo" pode ler-se outro componente fundamental da experiência, sua capacidade de formação ou de transformação. É experiência aquilo que 'nos passa', ou que nos toca, ou que nos acontece, e ao passar-nos nos forma e nos transforma. Somente o sujeito da experiência está, portanto, aberto a sua própria transformação.
5. Se a experiência é o que nos acontece, e se o sujeito da experiência é um território de passagem, então a experiência é uma paixão. Não se pode captar a experiência a partir de uma lógica da ação, a partir de uma reflexão do sujeito sobre si mesmo enquanto sujeito agente, a partir de uma teoria das condições de possibilidade da ação, mas a partir de uma lógica da paixão, uma reflexão do sujeito sobre si mesmo enquanto sujeito passional. E a palavra paixão pode referir-se a várias coisas.
Primeiro, a um sofrimento ou um padecimento. No padecer não se é ativo, porém tampouco se é simplesmente passivo. O sujeito passional não é agente, mas paciente, mas há na paixão um assumir os padecimentos, como um viver, ou experimentar, ou suportar, ou aceitar, ou assumir o padecer que não tem nada que ver com a mera passividade. Como se o sujeito passional fizesse algo ao assumir sua paixão. Às vezes, inclusive, algo público, ou político, ou social, como um testemunho público de algo, ou uma prova pública de algo, ou um martírio público em nome de algo, ainda que esse "público" se dê na mais estrita solidão, no mais completo anonimato.
"Paixão" pode referir-se também a uma certa heteronomia, ou a uma certa responsabilidade em relação com o outro que, no entanto, não é incompatível com a liberdade ou a autonomia. Ainda que se trate, naturalmente, de outra liberdade e de outra autonomia diferente daquela do sujeito que se determina por si mesmo. A paixão funda sobretudo uma liberdade dependente, determinada, vinculada, obrigado, inclusa, fundada não nela mesma mas numa aceitação primeira de algo que está fora de mim, de algo que não sou eu e que por isso, justamente, é capaz de me apaixonar.
E "paixão" pode referir-se, por fim, a uma experiência do amor, o amor-paixão ocidental, cortesão, cavalheiresco, cristão, pensado como posse e feito de um desejo que permanece desejo e que quer permanecer desejo, pura tensão insatisfeita, pura orientação para um objeto sempre inatingível. Na paixão, o sujeito apaixonado não possui o objeto amado, mas é possuído por ele. Por isso o sujeito apaixonado não está em si próprio, na posse de si mesmo, no autodomínio, mas está fora de si, dominado pelo outro, cativado pelo alheio, alienado, alucinado.
Na paixão se dá uma tensão entre liberdade e escravidão, no sentido de que o que quer o sujeito é, precisamente, permanecer cativo, viver seu cativeiro, sua dependência daquele por quem está apaixonado. Ocorre também uma tensão entre prazer e dor, entre felicidade e sofrimento, no sentido de que o sujeito apaixonado encontra sua felicidade ou ao menos o cumprimento de seu destino no padecimento que sua paixão lhe proporciona. O que o sujeito ama é precisamente sua própria paixão. Mais ainda: o sujeito apaixonado não é outra coisa e não quer ser outra coisa que não a paixão. Daí, talvez, a tensão que a paixão extrema suporta entre vida e morte. A paixão tem uma relação intrínseca com a morte, ela se desenvolve no horizonte da morte, mas de uma morte que é querida e desejada como verdadeira vida, como a única coisa que vale a pena viver, e às vezes como condição de possibilidade de todo renascimento.
6. Até aqui vimos algumas explorações sobre o que poderia ser a experiência e o sujeito da experiência. Algo que vimos sob o ponto de vista da travessia e do perigo, da abertura e da ex-posição, da receptividade e da transformação, e da paixão. Vamos agora ao saber da experiência. Definir o sujeito da experiência como sujeito passional não significa pensá-lo como incapaz de conhecimento, de compromisso ou ação. A experiência funda também uma ordem epistemológica e uma ordem ética. O sujeito passional tem também sua própria força, e essa força se expressa produtivamente em forma de saber e em forma de praxis. O que ocorre é que se trata de um saber distinto do saber científico e do saber da informação, e de uma praxis distinta daquela da técnica e do trabalho.
O saber de experiência se dá na relação entre o conhecimento e a vida humana. De fato, a experiência é uma espécie de mediação entre ambos. É importante, porém, ter presente que, do ponto de vista da experiência, nem "conhecimento" nem "vida" significam o que significam habitualmente.
Atualmente, o conhecimento é essencialmente a ciência e a tecnologia, algo essencialmente infinito, que somente pode crescer; algo universal e objetivo, de alguma forma impessoal; algo que está aí, fora de nós, como algo de que podemos nos apropriar e que podemos utilizar; e algo que tem que ver fundamentalmente com o útil no seu sentido mais estreitamente pragmático, num sentido estritamente instrumental. O conhecimento é basicamente mercadoria e, estritamente, dinheiro, tão neutro e intercambiável, tão sujeito à rentabilidade e à circulação acelerada como o dinheiro. Recordem-se as teorias do capital humano ou essas retóricas contemporâneas sobre a sociedade do conhecimento, a sociedade da aprendizagem, ou a sociedade da informação.
Por outro lado, a "vida" se reduz a sua dimensão biológica, à satisfação das necessidades (geralmente induzidas, sempre incrementadas pela lógica do consumo), à sobrevivência dos indivíduos e da sociedade. Pense-se no que significa para nós "qualidade de vida" ou "nível de vida", nada mais que a posse de uma série de cacarecos para uso e desfrute.
Nestas condições, é claro que a mediação entre o conhecimento e a vida não é outra coisa que a apropriação utilitária, a utilidade disto que se nos apresenta como "conhecimento" para as necessidades disso que se nos dá como "vida" e que são completamente indistintas das necessidades do Capital e do Estado.
Para entender o que seja a experiência, é necessário remontar aos tempos anteriores à ciência moderna (com sua específica definição do conhecimento como conhecimento objetivo) e à sociedade capitalista (onde se constituiu a definição moderna de vida como vida burguesa). Durante séculos o saber humano havia sido entendido como um páthei máthos, como uma aprendizagem no e pelo padecer, no e por aquilo que nos acontece. Esse é o saber da experiência: o que se adquire no modo como alguém vai respondendo ao que vai lhe acontecendo ao largo da vida e no modo como vamos dando sentido ao acontecer do que nos acontece. No saber da experiência não se trata da verdade do que são as coisas, mas do sentido ou do sem-sentido do que nos acontece. E esse saber da experiência tem algumas características essenciais que o opõem, ponto por ponto, ao que entendemos como conhecimento.
Se a experiência é o que nos acontece e se o saber da experiência tem a ver com a elaboração do sentido ou do sem-sentido do que nos acontece, trata-se de um saber finito, ligado à existência de um indivíduo ou de uma comunidade humana particular. Ou, de um modo ainda mais explícito, trata-se de um saber que revela ao homem concreto e singular, entendido individual ou coletivamente, o sentido ou o sem-sentido de sua própria existência, de sua própria finitude. Por isso o saber da experiência é um saber particular, subjetivo, relativo, contingente, pessoal. Se a experiência não é o que acontece, mas o que nos acontece, duas pessoas ainda que enfrentem o mesmo acontecimento, não fazem a mesma experiência. O acontecimento é comum, mas a experiência é para cada qual sua, singular e de alguma maneira irrepetível. O saber da experiência é um saber que não pode separar-se do indivíduo concreto em quem encarna. Não está, como o conhecimento científico, fora de nós, mas somente tem sentido no modo como configura uma personalidade, um caráter, uma sensibilidade ou, em definitivo, uma forma humana singular de estar no mundo que é por sua vez uma ética (um modo de conduzir-se) e uma estética (um estilo). Por isso também o saber da experiência não pode beneficiar-se de qualquer alforria, quer dizer, ninguém pode aprender da experiência de outro a menos que essa experiência seja de algum modo revivida e tornada própria.
A primeira nota sobre o saber da experiência sublinha, então, sua qualidade existencial, isto é, sua relação com a existência, com a vida singular e concreta de um existente singular e concreto. A experiência e o saber que dela deriva são o que nos permite apropriar-nos de nossa própria vida, Ter uma vida própria, pessoal, como dizia Rainer Maria Rilke, em Los Cuadernos de Malthe, algo cada vez mais raro, quase tão raro quanto uma morte própria. Se chamamos existência a esta vida própria, contingente e finita, a essa vida que não está determinada por nenhuma essência nem por nenhum destino, a essa vida que não tem nenhuma razão nem nenhum fundamento fora dela mesma, a essa vida cujo sentido se vai construindo e destruindo no viver mesmo, podemos pensar que tudo o que faz impossível a experiência faz também impossível a existência.
7. A ciência moderna, a que se inicia em Bacon e alcança sua formulação mais elaborada em Descartes, desconfia da experiência. E trata de convertê-la em um elemento do método, isto é, do caminho seguro da ciência. A experiência já não é o meio desse saber que forma e transforma a vida dos homens em sua singularidade, mas o método da ciência objetiva, da ciência que se dá como tarefa a apropriação e o domínio do mundo. Aparece assim a idéia de uma ciência experimental. Mas aí a experiência se converteu em experimento, isto é, em uma etapa no caminho seguro e previsível da ciência. A experiência já não é o que nos acontece e o modo como lhe atribuímos ou não um sentido, mas o modo como o mundo nos mostra sua cara legível, a série de regularidades a partir das quais podemos conhecer a verdade do que são as coisas e dominá-las. A partir daí o conhecimento já não é um páthei máthos, uma aprendizagem na prova e pela prova, com toda a incerteza que isso implica, mas um mathema, uma acumulação progressiva de verdades objetivas que, no entanto, permanecerão externas ao homem. Um vez vencido e abandonado o saber da experiência e uma vez o conhecimento da existência humana, temos uma situação paradoxal. Uma enorme inflação de conhecimentos objetivos, uma enorme abundância de artefatos técnicos e uma enorme pobreza dessas formas de conhecimento que atuavam na vida humana nela inserindo-se e transformando-a. A vida humana se fez pobre e necessitada, e o conhecimento moderno já não é o saber ativo que alimentava, iluminava e guiava a existência dos homens, mas algo que flutua no ar, estéril e desligado dessa vida em que já não pode encarnar-se.
A segunda nota sobre o saber da experiência pretende evitar a confusão de experiência com experimento ou, se se quiser, limpar a palavra experiência de suas contaminações empíricas e experimentais, de suas conotações metodológicas e metodologizantes. Se o experimento é genérico, a experiência é singular. Se a lógica do experimento produz acordo, consenso ou homogeneidade entre os sujeitos, a lógica da experiência produz diferença, heterogeneidade e pluralidade. Por isso no compartir a experiência, trata-se mais de uma heterologia do que de uma homologia, ou melhor, trata-se mais de uma dialogia que funciona heterologicamente do que uma dialogia que funciona homologicamente. Se o experimento é repetível , a experiência é irrepetível, sempre há algo como a primeira vez. Se o experimento é preditível e previsível, a experiência tem sempre uma dimensão de incerteza que não pode ser reduzida. Além disso, posto quenão se pode antecipar o resultado, a experiência não é o caminho até um objetivo previsto, até uma meta que se conhece de antemão, mas é uma abertura para o desconhecido, para o que não se pode antecipar nem pré-ver nem pré-dizer.
(tradução: João Wanderley Geraldi)
Notas
[*] Palestra proferida no 13º COLE-Congresso de Leitura do Brasil, realizado na Unicamp, Campinas/SP, no período de 17 a 20 de julho de 2001.
[1.] Em espanhol, o autor faz um jogo de palavras impossível no português: "Se diria que todo lo que pasa está organizado para que nada nos pase" exceto se optássemos por uma tradução como "Dir-se-ia que tudo o que se passa está organizado para que nada se nos passe". (Nota do tradutor)
[2.] Em espanhol, escreve-se "extranjero". (Nota do tradutor)
[3.] Em espanhol, extraño. (Nota do tradutor) 




O Narrador (Walter Benjamin)
Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov

1

Por mais familiar que seja seu nome, o narrador não está de fato presente entre nós, em sua atualidade viva. Ele é algo de distante, e que se distancia ainda mais. Descrever um Leskov* como narrador não significa trazê-lo mais perto de nós, e sim, pelo contrário, aumentar a distância que nos separa dele. Vistos de uma' certa distância, os traços grandes e simples que caracterizam o narrador se destacam nele. Ou melhor, esses traços aparecem, como um rosto humano ou um corpo de animal aparecem num rochedo, para um observador localizado numa distância apropriada e num ângulo favorável. Uma experiência quase cotidiana nos impõe a exigência dessa distância e desse ângulo de observação. É a experiência de que a arte de narrar está em vias de extinção. São cada vez mais raras as pessoas que sabem narrar devidamente. Quando se pede num grupo que alguém narre alguma coisa, o embaraço se generaliza. É como se estivéssemos privados de uma faculdade que nos parecia segura e inalienável: a faculdade de intercambiar experiências.

Uma das causas desse fenômeno é óbvia: as ações da experiência estão em baixa, e tudo indica que continuarão caindo até que seu valor desapareça de todo. Basta olharmos um jornal para percebermos que seu nível está mais baixo que nunca, e que da noite para o dia não somente a imagem do mundo exterior, mas também a do mundo ético sofreram transformações que antes não julgaríamos possíveis. Com a guerra mundial tornou-se manifesto um processo que continua até hoje. No final da guerra, observou-se que os combatentes voltavam mudos do campo de batalha não mais ricos, e sim mais pobres em experiência comunicável. E o que se difundiu dez anos depois, na enxurrada de livros sobre a guerra, nada tinha em comum com uma experiência transmitida de boca em boca.

Não havia nada de anormal nisso. Porque nunca houve experiências mais radicalmente desmoralizadas que a experiência estratégica pela guerra de trincheiras, a experiência econômica pela inflação, a experiência do corpo pela guerra de material e a experiência ética pelos governantes. Uma geração que ainda fora à escola num bonde puxado por cavalos se encontrou ao ar livre numa paisagem em que nada permanecera inalterado, exceto as nuvens, e debaixo delas, num campo de forças de torrentes e explosões, o frágil e minúsculo corpo humano.

(*) Nikolai Leskov nasceu em 1831 na província de Orjol e morreu em 1895, em S. Petersburgo. Por seus 'interesses e simpatias pelos camponeses, tem certas afinidades com Tolstoi, e por sua orientação religiosa, com Dostoievski. Mas os textos menos duradouros de sua obra são exatamente aqueles em que tais tendências assumem uma expressão dogmática e doutrinária - os primeiros romances. A significação de Leskov está em suas narrativas. que pertencem a uma fase posterior. Desde o fim da guerra houve várias tentativas de difundir essas narrativas nos países de língua alemã. Além das pequenas coletâneas publicadas pelas editoras Musarion e Georg Müller, devemos mencionar, com especial destaque, a seleção em nove volumes da editora C. H; Beck.

2

A experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorreram todos os narradores. E, entre as narrativas escritas, as melhores são as que menos se distinguem das histórias orais contadas pelos inúmeros narradores anônimos. Entre estes, existem dois grupos, que se interpenetram de múltiplas maneiras. A figura do narrador só se torna plenamente tangível se temos presentes esses dois grupos. "Quem viaja tem muito que contar", diz o povo, e com isso imagina o narrador como alguém que vem de longe. Mas também escutamos com prazer o homem que ganhou honestamente sua vida sem sair do seu país e que conhece suas histórias e tradições. Se quisermos concretizar esses dois grupos através dos seus representantes arcaicos, podemos dizer que um é exemplificado pelo camponês sedentário, e outro pelo marinheiro comerciante. Na realidade, esses dois estilos de vida produziram de certo modo suas respectivas famílias de narradores.

Cada uma delas conservou, no decorrer dos séculos, suas características próprias. Assim, entre os autores alemães "modernos, Hebel e Gotthelf pertencem à primeira família, e Sielsfield e Gerstäcker à segunda. No entanto essas duas famílias, como já se disse, constituem apenas tipos fundamentais. A extensão real do reino narrativo, em todo o seu alcance histórico, só pode ser compreendido se levarmos em conta a interpenetração desses dois tipos arcaicos. O sistema corporativo medieval contribuiu especialmente para essa interpenetração. O mestre sedentário e os aprendizes migrantes trabalhavam juntos na mesma oficina; cada mestre tinha sido um aprendiz ambulante antes de se fixar em sua pátria ou no estrangeiro. Se" os camponeses e os marujos foram os primeiros mestres da arte de narrar, foram os artífices que a aperfeiçoaram. No sistema corporativo associava-se o saber das terras distantes, trazidos para casa pelos migrantes, com o saber do passado, recolhido pelo trabalhador sedentário.

3

Leskov está à vontade tanto na distância espacial como na distância temporal. Pertencia à Igreja Ortodoxa grega e tinha um genuíno interesse religioso. Mas sua hostilidade pela burocracia eclesiástica não era menos genuína. Como suas relações com o funcionalismo leigo não eram melhores, os cargos oficiais que exerceu não foram de longa duração. O emprego de agente russo de uma firma inglesa, que ocupou durante muito tempo, foi provavelmente, de todos os empregos possíveis, o mais útil para sua produção literária, A serviço dessa firma, viajou pela Rússia, e essas viagens enriqueceram tanto a sua experiência do mundo como seus conhecimentos sobre as condições russas. Desse modo teve ocasião de conhecer o funcionamento das seitas rurais, o que deixou traços em suas narrativas. Nos contos lendârios russos, Leskov encontrou aliados em seu combate contra a burocracia ortodoxa. Escreveu uma série de contos desse gênero, cujo personagem central é o justo, raramente um asceta, em geral um homem simples e ativo, que se transforma em santo com a maior naturalidade. A exaltação mística é alheia a Leskov. Embora ocasionalmente se interessasse pelo maravilhoso, em questões de piedade preferia uma atitude solidamente natural. Seu ideal é o homem que aceita o mundo sem se prender demasiadamente a ele. Seu comportamento em questões temporais correspondia a essa atitude. É coerente com tal comportamento que ele tenha começado tarde a escrever, ou seja, com 29 anos, depois de suas viagens comerciais. Seu primeiro texto impresso se intitulava: "Por que são os livros caros em Kiev?" _ Seus contos foram precedidos por uma série de escritos sobre a classe operária, sobre o alcoolismo, sobre os médicos da polícia e sobre os vendedores desempregados.

4

O senso prático é uma das características de muitos narradores natos. Mais tipicamente que em Leskov, encontramos esse atributo num Gotthelf, que dá conselhos de agronomia a seus camponeses, num Nodier, que se preocupa com os perigos da iluminação a gás, e num Hebel, que transmite a seus leitores pequenas informações científicas em seu Schatzkastlein (Caixa de tesouros). Tudo isso esclarece a natureza da verdadeira narrativa. Ela tem sempre em si, às vezes de forma latente uma dimensão utilitária. Essa utilidade pode consistir seja num ensinamento moral, seja numa sugestão pratica, seja num provérbio ou numa norma de vida - de qualquer maneira, o narrador é um homem que sabe dar conselhos. Mas se "dar conselhos" parece hoje algo de antiquado, é porque as experiências estão deixando de ser comunicáveis. Em conseqüência, não podemos dar conselhos nem a nós mesmos nem aos outros. Aconselhar é menos responder a uma pergunta que fazer uma sugestão sobre a continuação de uma história que está sendo narrada, Para obter essa sugestão, é necessário primeiro saber narrar a história (sem contar que um homem só é receptivo a um conselho na medida em que verbaliza a sua situação). O conselho tecido na substância viva da existência tem um nome: sabedoria. A arte de narrar está definhando porque u sabedoria - o lado épico da verdade - está em extinção. Porém esse processo vem de longe. Nada seria mais tolo que ver nele um "sintoma de decadência" ou uma característica "moderna". Na realidade, esse processo, que expulsa gradualmente a narrativa da esfera do discurso vivo e ao mesmo tempo dá uma nova beleza ao que está desaparecendo, tem se desenvolvido concomitantemente com toda uma evolução secular das forças produtivas.

5

O primeiro indício da evolução que vai culminar na morte da narrativa é o surgimento do romance no início do período moderno. O que separa o romance da narrativa da epopéia no sentido estrito é que ele está essencialmente vinculado ao livro. A difusão do romance só se torna possível com a invenção da imprensa. A tradição oral, patrimônio da poesia épica, tem uma natureza fundamentalmente distinta da que caracteriza o romance. O que distingue o romance de todas as outras formas de prosa - contos de fada, lendas e mesmo novelas - é que ele nem procede da tradição oral nem a alimenta. Ele se distingue, especialmente, da narrativa. O narrador retira da experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a relatada pelos outros. E incorpora as coisas narradas à experiência dos seus ouvintes. O romancista segrega-se. A origem do romance.é o indivíduo isolado, que não pode mais falar exemplarmente sobre suas preocupações mais importantes e que não recebe conselhos nem sabe dá-los. Escrever um romance significa, na descrição de uma vida, levar o incomensurável aos seus últimos limites. Na riqueza dess ávida de na descrição dessa riqueza, o romance anuncia a profunda perplexidade de quem a vive. O primeiro grande livro do gênero, Dom Quixote, mostra como a grandeza da alma, a coragem e a generosidade de um dos mais nobres heróis da literatura são totalmente refratárias ao conselho e não contêm a menor centelha de sabedoria. Quando no correr dos séculos se tentou ocasionalmente incluir no romance algum ensinamento - talvez o melhor exemplo seja Wilhelm Meisters Wanderjahre (Os anos de peregrinação de Wilhelm Meister), essas tentativas resultaram sempre na transformação da própria forma romanesca. O romance de formação (Bindungsroman), por outro lado, não se afasta absolutamente da estrutura fundamental do romance. Ao integrar o processo da vida social na vida de uma pessoa, ele justifica de modo extremamente frágil as leis que determinam tal processo. A legitimação dessas leis nada tem a ver com sua realidade. No romance de formação, é essa insuficiência que está na base da ação.

6

Devemos imaginar a transformação das formas épicas segundo ritmos comparáveis aos que presidiram à transformação da crosta terrestre no decorrer dos milênios. Poucas formas de comunicação humana evoluíram mais lentamente e se extinguiram mais lentamente. O romance, cujos primórdios remontam à Antiguidade, precisou de centenas de anos para encontrar na burguesia ascendente, os elementos favoráveis a seu florescimento. Quando esses elementos surgiram, a narrativa começou pouco a pouco a tornar-se arcaica; sem dúvida, ela se apropriou de múltiplas formas, do novo conteúdo, mas não foi determinada verdadeiramente por ele. Por outro lado, verificamos que com a consolidação da burguesia – da qual a imprensa, no alto capitalismo, é um dos instrumentos mais importantes - destacou-se uma forma de comunicação que, por mais antigas que fossem suas origens, nunca havia influenciado decisivamente a forma épica. Agora ela exerce essa influência. Ela é tão estranha à narrativa como o romance, mas é mais ameaçadora e, de resto, provoca uma crise no próprio romance. Essa nova forma de comunicação é a informação.

Villemessant, o fundador do Figaro, caracterizou a essência da informação com uma fórmula famosa. "Para meus leitores", costumava dizer, "o incêndio num sótão do Quartier Latin é mais importante que uma revolução em Madri”. Essa fórmula lapidar mostra claramente que o saber que vem de longe encontra hoje menos ouvintes que a informação sobre acontecimentos próximos. O saber, que vinha de longe - do longe espacial das terras estranhas, ou do longe temporal contido na tradição -, dispunha de uma autoridade que era válida mesmo que não fosse controlável pela experiência. Mas a informação aspira a uma verificação imediata. Antes de mais nada, ela precisa ser compreensível "em si e para si". Muitas vezes não é mais exata que os relatos antigos. Porém, enquanto esses relatos recorriam freqüentemente ao miraculoso, é indispensável que a informação seja plausível. Nisso ela é incompatível com o espírito da narrativa. Se a arte da narrativa é hoje rara, a difusão da informação é decisivamente responsável por esse declínio.

Cada manhã recebemos notícias de todo o mundo. E, no entanto, somos pobres em histórias surpreendentes. A razão é que os fatos já nos chegam acompanhados de explicações. Em outras palavras: quase nada do que acontece está a serviço da narrativa, e quase tudo está a serviço da informação. Metade da arte narrativa está em evitar explicações. Nisso Leskov é magistral. (Pensemos em textos como A fraude, ou A águia branca). O extraordinário e o miraculoso são narrados com a maior exatidão, mas o contexto psicológico da ação não é imposto ao leitor. Ele é livre para interpretar a história como quiser, e com isso o episódio narrado atinge uma amplitude que não existe na informação.

7

Leskov freqüentou a escola dos Antigos. O primeiro narrador grego foi Heródoto. No capítulo XIV do terceiro livro de suas Histórias encontramos um relato muito instrutivo. Seu tema é Psammenit. Quando o rei egípcio Psammenit foi derrotado e reduzido ao cativeiro pelo rei persa Cambises, este resolveu humilhar seu cativo. Deu ordens para que Psammenit fosse posto na rua em que passaria o cortejo triunfal dos persas. Organizou esse cortejo de modo que o prisioneiro pudesse ver sua filha degradada à condição de criada, indo ao poço com um jarro, para buscar água. Enquanto todos os egípcios se lamentavam com esse espetáculo, Psammenit ficou silencioso e imóvel, com os olhos no chão; e, quando logo em seguida viu seu filho, caminhando no cortejo para ser executado, continuou imóvel. Mas, quando viu um dos seus servidores, um velho miserável, na fila dos cativos, golpeou a cabeça com os punhos e mostrou os sinais do mais profundo desespero.

Essa história nos ensina o que é a verdadeira narrativa. A informação só tem valor no momento em que é nova. Ela só vive nesse momento, precisa entregar-se inteiramente a ele e sem perda de tempo tem que se explicar nele. Muito diferente é a narrativa. Ela não se entrega. Ela conserva suas forças e depois de muito tempo ainda é capaz de se desenvolver. Assim, Montaigne alude à história do rei egípcio e pergunta: porque ele só se lamenta quando reconhece o seu servidor? Sua resposta é que ele "já estava tão cheio de tristeza, que uma gota a mais bastaria para derrubar as comportas". É a explicação de Montaigne. Mas poderíamos também dizer: "O destino da família real não afeta o rei, porque é o seu próprio destino". Ou: "muitas coisas que não nos afetam na vida nos afetam no palco, e para o rei o criado era apenas um ator". Ou: "as grandes dores são contidas, e só irrompem quando ocorre uma distensão. O espetáculo do servidor foi essa distensão". Heródoto não explica nada. Seu relato é dos mais secos. Por isso, essa história do antigo Egito ainda é capaz, depois de milênios, de suscitar espanto e reflexão. Ela se assemelha a essas sementes de trigo que durante milhares de anos ficaram fechadas hermeticamente nas câmaras das pirâmides e que conservam até hoje suas forças germinativas.

8

Nada facilita mais a memorização das narrativas que aquela sóbria concisão que as salva da análise psicológica. Quanto maior a naturalidade com que o narrador renuncia às sutilezas psicológicas, mais facilmente a história se gravará na memória do ouvinte, mais completamente ela se assimilará à sua própria experiência e mais irresistivelmente ele cederá à inclinação de recontá-la um dia. Esse processo de assimilação se dá em camadas muito profundas e exige um estado de distensão que se torna cada vez mais raro. Se o sono é o ponto mais alto da distensão física, o tédio é o ponto mais alto da distensão psíquica. O tédio é o pássaro de sonho que choca os ovos da experiência. O menor sussurro nas folhagens o assusta. Seus ninhos - as atividades intimamente associadas ao tédio - já se extinguiram na cidade e estão em vias de extinção no campo. Com isso, desaparece o dom de ouvir, e desaparece a comunidade dos ouvintes. Contar histórias sempre foi a arte de contá-las de novo, e ela se perde quando as histórias não são mais conservadas. Ela se perde porque ninguém mais fia ou tece enquanto ouve a história. Quanto mais o ouvinte se esquece de si mesmo, mais profundamente se grava nele o que é ouvido. Quando o ritmo do trabalho se apodera dele, ele escuta as histórias de tal maneira que adquire espontaneamente o dom de narrá-las. Assim se teceu a rede em que está guardado o dom narrativo. E assim essa rede se desfaz hoje por todos os lados, depois de ter sido tecida, há milênios, em torno das mais antigas formas de trabalho manual.


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A narrativa, que durante tanto tempo floresceu num meio de artesão - no campo, no mar e na cidade -, é ela própria, num certo sentido, uma forma artesanal de comunicação. Ela não está interessada em transmitir o "puro em si" da coisa narrada como uma informação ou um relatório. Ela mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida retirá-la dele. Assim se imprime na narrativa a marca do narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso. Os narradores gostam de começar sua história com uma descrição das circunstâncias em que foram informados dos fatos que vão contar a seguir, a menos que prefiram atribuir essa história a uma experiência autobiográfica. Leskov começa A fraude com uma descrição de uma viagem de trem, na qual ouviu de um companheiro de viagem os episódios que vai narrar; ou pensa no enterro de Dostoievski, no qual travou conhecimento com a heroína de A propósito da Sonata de Kreuzer; ou evoca uma reunião num círculo de leitura, no qual soube dos fatos relatados em Homens interessantes. Assim, seus vestígios estão presentes de muitas maneiras nas coisas narradas, seja na qualidade de quem as viveu, seja na qualidade de quem as relata.

O próprio Leskov considerava essa arte artesanal - a narrativa - como um ofício manual. "A literatura", diz ele em uma carta, "não é para mim uma arte, mas um trabalho manual." Não admira que ele tenha se sentido ligado ao trabalho manual e estranho à técnica industrial. Tolstoi, que tinha afinidades com essa atitude, alude de passagem a esse elemento central do talento narrativo de Leskov, quando diz que ele foi o primeiro "a apontar a insuficiência do progresso econômico... É estranho que Dostoievski seja tão lido... Em compensação, não compreendo por que não se lê Leskov. Ele é um escritor fiel à verdade". No malicioso e petulante A pulga de aço, intermediário entre a lenda e a farsa, Leskov exalta, nos ourives de Tula, o trabalho artesanal. Sua obra-prima, a pulga de aço, chega aos olhos de Pedro, o Grande e o convence de que os russos não precisam envergonhar-se dos ingleses.

Talvez ninguém tenha descrito melhor que Paul Valéry a imagem espiritual desse mundo de artífices, do qual provém o narrador. Falando das coisas perfeitas que se encontram na natureza, pérolas imaculadas, vinhos encorpados e maduros, criaturas realmente completas, ele as descreve como "o produto precioso de uma longa cadeia de causas semelhantes entre si". O acúmulo dessas causas só teria limites temporais quando fosse atingida a perfeição. "Antigamente o homem imitava essa paciência", prossegue Valéry. "Iluminuras, marfins profundamente entalhados; pedras duras, perfeitamente polidas e claramente gravadas; lacas e pinturas obtidas pela superposição de uma quantidade de camadas finas e translúcidas... - todas essas produções de uma indústria tenaz e virtuosística cessaram, e já passou o tempo em que o tempo não contava. O homem de hoje não cultiva o que não pode ser abreviado." Com efeito, o homem conseguiu abreviar até a narrativa. Assistimos em nossos dias ao nascimento da short story, que se emancipou da tradição oral e não mais permite essa lenta superposição de camadas finas e translúcidas, que representa a melhor imagem do processo pelo qual a narrativa perfeita vem à luz do dia, como coroamento das várias camadas constituídas pelas narrações sucessivas.

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Valéry conclui suas reflexões com as seguintes palavras: "dir-se-ia que o enfraquecimento nos espíritos da idéia de eternidade coincide com uma aversão cada vez maior ao trabalho prolongado". A idéia da eternidade sempre teve na morte sua fonte mais rica. Se essa idéia está se atrofiando, temos que concluir que o rosto da morte deve ter assumido outro aspecto. Essa transformação é a mesma que reduziu a comunicabilidade da experiência à medida que a arte de narrar se extinguia.

No decorrer dos últimos séculos, pode-se observar que a idéia da morte vem perdendo, na consciência coletiva, sua onipresença e sua força de evocação. Esse processo se acelera em suas últimas etapas. Durante o século XIX, a sociedade burguesa produziu, com as instituições higiênicas e sociais, privadas e públicas, um efeito colateral que inconscientemente talvez tivesse sido seu objetivo principal: permitir aos homens evitarem o espetáculo da morte. Morrer era antes um episódio público na vida do indivíduo, e seu caráter era altamente exemplar: recordem-se as imagens da Idade Média, nas quais o leito de morte se transforma num trono em direção ao qual se precipita o povo, através das portas escancaradas. Hoje, a morte é cada vez mais expulsa do universo dos vivos. Antes não havia uma só casa e quase nenhum quarto em que não tivesse morrido alguém. (A Idade Média conhecia a contrapartida espacial daquele sentimento temporal expresso num relógio solar de Ibiza: ultima multis). Hoje, os burgueses vivem em espaços depurados de qualquer morte e, quando chegar sua hora, serão depositados por seus herdeiros em sanatórios e hospitais. Ora, é no momento da morte que o saber e a sabedoria do homem e, sobretudo sua existência vivida – e é dessa substância que são feitas as histórias - assumem pela primeira vez uma forma transmissível. Assim como no interior do agonizante desfilam inúmeras imagens - visões de si mesmo, nas quais ele se havia encontrado sem se dar conta disso -, assim o inesquecível aflora de repente em seus gestos e olhares, conferindo a tudo o que lhe diz respeito aquela autoridade que mesmo um pobre-diabo possui ao morrer, para os vivos em seu redor. Na origem da narrativa está essa autoridade.

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A morte é a sanção de tudo o que o narrador pode contar. É da morte que ele deriva sua autoridade. Em outras palavras: suas histórias remetem à história natural. Esse fenômeno é ilustrado exemplarmente numa das mais belas narrativas do incomparável Johann Peter Hebel. Ela faz parte do Schatzkästlein des rheinischen Hausfreunde (Caixa de tesouros do amigo renano das famílias) e chama-se Unverhofftes Wiedersehen (Reencontro inesperado). A história começa com o noivado de um jovem aprendiz que trabalha nas minas de Falun. Na véspera do casamento, o rapaz morre em um acidente, no fundo da sua galeria subterrânea. Sua noiva se mantém fiel além da morte e vive o suficiente para reconhecer um dia, já extremamente velha, o cadáver do noivo, encontrado em sua galeria perdida e preservado da decomposição pelo vitríolo ferroso. A anciã morre pouco depois. Ora, Hebel precisava mostrar palpavelmente o longo tempo decorrido desde o início da história, e sua solução foi a seguinte:

"Entrementes, a cidade de Lisboa foi destruída por um terremoto, e a guerra dos Sete Anos terminou, e o imperador Francisco I morreu, e a ordem dos jesuítas foi dissolvida, e a Polônia foi retalhada, e a imperatriz Maria Teresa morreu, e Struensee foi executado, a América se tornou independente, e a potência combinada da França e da Espanha não pôde conquistar Gibraltar. Os turcos prenderam o general Stein na grota dos veteranos, na Hungria, e o imperador José morreu também. O rei Gustavo da Suécia tomou a Finlândia dos russos, e a Revolução Francesa e as grandes guerras começaram, e o rei Leopoldo II faleceu também. Napoleão conquistou a Prússia, e os ingleses bombardearam Copenhague, e os camponeses semeavam e ceifavam. O moleiro moeu, e os ferreiros forjaram, e os mineiros cavaram à procura de filões metálicos, em suas oficinas subterrâneas. Mas, quando no ano de 1809 os mineiros de Falun...". Jamais outro narrador conseguiu inscrever tão profundamente sua história na história natural como Hebel com essa cronologia. Leia-se com atenção: a morte reaparece nela tão regularmente como o esqueleto, com sua foice, nos cortejos que desfilam ao meio-dia nos relógios das catedrais.

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Cada vez que se pretende estudar uma certa forma épica é necessário investigar a relação entre essa forma e a historiografia. Podemos ir mais longe e perguntar se a historiografia não representa uma zona de indiferenciação criadora com relação a todas as formas épicas. Nesse caso, a história escrita se relacionaria com as formas épicas como a luz branca com as cores do espectro. Como quer que seja, entre todas as formas  épicas a crônica é aquela cuja inclusão na luz pura e incolor da história escrita é mais incontestável. E, no amplo espectro da crônica, todas as maneiras com que uma história pode ser narrada se estratificam como se fossem variações da mesma cor. O cronista é o narrador da história. Pense-se no trecho de Hebel citado acima, cujo tom é claramente o da crônica, e notar-se-á facilmente a diferença entre quem escreve a história, o historiador, e quem a narra, o cronista. O historiador é obrigado a explicar de uma ou outra maneira os episódios com que lida, e não pode absolutamente contentar-se em representá-los como modelos da história do mundo. É exatamente o que faz o cronista, especialmente através dos seus representantes clássicos, os cronistas medievais, precursores da historiografia moderna. Na base de sua historiografia está o plano da salvação, de origem divina, indevassável em seus desígnios, e com isso desde o início se libertaram do ônus da explicação verificável. Ela é substituída pela exegese, que não se preocupa com o encadeamento exato de fatos determinados, mas com a maneira de sua inserção no fluxo insondável das coisas.

Não importa se esse fluxo se inscreve na história sagrada ou se tem caráter natural. No narrador, o cronista conservou-se, transformado e por assim dizer secularizado. Entre eles, Leskov é aquele cuja obra demonstra mais claramente esse fenômeno. Tanto o cronista, vinculado à história sagrada, como o narrador, vinculado à história profana, participam igualmente da natureza dessa obra a tal ponto que, em muitas de suas narrativas, é difícil decidir se o fundo sobre o qual elas se destacam é a trama dourada de uma concepção religiosa da história ou a trama colorida de uma concepção profana. Pense-se, por exemplo, no conto A alexandrita, que coloca o leitor nos velhos tempos em que "as pedras nas entranhas da terra e os planetas nas esferas celestes se preocupavam ainda com o destino do homem, ao contrário dos dias de hoje, em que tanto no céu como na terra tudo se tornou indiferente à sorte dos seres humanos, e em que nenhuma voz, venha de onde vier, lhes dirige a palavra ou lhes obedece. Os planetas recém descobertos não desempenham mais nenhum papel no horóscopo, e existem inúmeras pedras novas, todas medidas e pesadas e com seu peso específico e sua densidade exatamente calculados, mas elas não nos anunciam nada e não têm nenhuma utilidade para nós. O tempo já passou em que elas conversavam com os homens" .

Como se vê, é difícil caracterizar inequivocamente o curso das coisas, como Leskov o ilustra nessa narrativa. É determinado pela história sagrada ou pela história natural? Só se sabe que, enquanto tal, o curso das coisas escapa a qualquer categoria verdadeiramente histórica. Já se foi a época, diz Leskov, em que o homem podia sentir-se em harmonia com a natureza. Schiller chamava essa época o tempo da literatura ingênua. O narrador mantém sua fidelidade a essa época, e seu olhar não se desvia do relógio diante do qual desfila a procissão das criaturas, na qual a morte tem seu lugar ou à frente do cortejo, ou como retardatária miserável.



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Não se percebeu devidamente até agora que a relação ingênua entre o ouvinte e o narrador é dominada pelo interesse em conservar o que foi narrado. Para o ouvinte imparcial, o importante é assegurar a possibilidade da reprodução. A memória é a mais épica de todas as faculdades: Somente uma memória abrangente permite à poesia épica apropriar-se do curso das coisas, por um lado, e resignar-se, por outro lado, com o desaparecimento dessas coisas, com o poder da morte. Não admira que para um personagem de Leskov, um simples homem do povo, o czar, o centro do mundo e em torno do qual gravita toda a história, disponha de uma memória excepcional. "Nosso imperador e toda a sua família têm com efeito uma surpreendente memória."

Mnemosyne, a deusa da reminiscência, era para os gregos a musa da poesia épica. Esse nome chama a atenção para uma decisiva guinada histórica. Se o registro escrito do que foi transmitido pela reminiscência - a historiografia - representa uma zona de indiferenciação criadora com relação às várias formas épicas (como a grande prosa representa uma zona de indiferenciação criadora com relação às diversas formas métricas), sua forma mais antiga, a epopéia propriamente dita, contém em si, por uma espécie de indiferenciação, a narrativa e o romance. Quando no decorrer dos séculos o romance começou a emergir do seio da epopéia, ficou evidente que nele a musa épica - a reminiscência - aparecia sob outra forma que na narrativa.

A reminiscência funda a cadeia da tradição. Que transmite o acontecimento de geração em geração. Ela corresponde à musa épica no sentido mais amplo. Ela inclui todas as variedades da forma épica. Entre elas, encontra-se em primeiro lugar a encarnada pelo narrador. Ela tece a rede que em última instância todas as histórias constituem entre si. Uma se articula na outra, como demonstraram todos os outros narradores, principalmente os orientais. Em cada um deles vive uma Scherazade, que imagina uma nova história em cada passagem da história que está contando. Tal é a memória épica e musa da narração. Mas a esta musa deve se opor outra; a musa do romance que habita a epopéia, ainda indiferenciada da musa da narrativa. Porém ela já pode ser pressentida na poesia épica. Assim, por exemplo, nas invocações solenes das Musas, que abrem os poemas homéricos. O que se pronuncia nessas passagens é a memória perpetuadora do romancista, em contraste com a breve memória do narrador. A primeira é consagrada a um herói, uma peregrinação, um combate; a segunda, a muitos fatos difusos. Em outras palavras, a rememoração, musa do romance, surge ao lado da memória, musa da narrativa, depois que a desagregação da poesia épica apagou a unidade de sua origem comum na reminiscência.

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Como disse Pascal, ninguém morre tão pobre que não deixe alguma coisa atrás de si. Em todo caso, ele deixa reminiscência, embora nem sempre elas encontrem um herdeiro. O romancista recebe a sucessão quase sempre com uma profunda melancolia. Pois assim como se diz num romance de Arnold Bennet que uma pessoa acabara de morrer “não tinha de fato vivido”, o mesmo costuma acontecer com as somas que o romancista recebe de herança. Georg Lukács viu com grande lucidez esse fenômeno. Para ele, o romance é "a forma do desenraizamento transcendental". Ao mesmo tempo, o romance, segundo Lukács, é a única forma que inclui o tempo entre os seus princípios constitutivos. "O tempo", diz a Teoria do romance, "Só pode ser constitutivo quando cessa a ligação com a pátria transcendenta1... Somente o romance... separa o sentido e a vida, e, portanto, o essencial e o temporal. Podemos quase dizer que toda a ação interna do romance não é senão a luta contra o poder do tempo... Desse combate, ... emergem as experiências temporais autenticamente épicas: a esperança e a reminiscência... Somente no romance... ocorre uma reminiscência criadora, que atinge seu objeto e o transforma... O sujeito só pode ultrapassar o dualismo da interioridade e da exterioridade quando percebe a unidade de toda a sua vida... na corrente vital do seu passado, resumida na reminiscência... A visão capaz de perceber essa unidade é apreensão divinatória e intuitiva do sentido da vida, inatingido e, portanto, inexprimível."

Com efeito. "Q sentido da vida" é o centro em torno do qual se movimenta o romance. Mas essa questão não é outra coisa que a expressão da perplexidade do leitor quando mergulha na descrição dessa vida. Num caso, "o sentido da  vida" e no outro, "a moral da história" - essas duas palavras de ordem distinguem entre si o romance e a narrativa, permitindo-nos compreender o estatuto histórico completamente diferente de uma e outra forma. Se o modelo mais antigo do romance é Dom Quixote, o mais recente talvez seja A educação sentimental. As últimas palavras deste romance mostram como o sentido do período burguês no início do seu declínio se depositou como um sedimento no copo da vida. Frédéric e Deslauriers, amigos de juventude, recordam-se de sua mocidade e lembram um pequeno episódio: uma vez, entraram no bordei de sua cidade natal, furtiva e timidamente, e limitaram-se a oferecer à dona da casa um ramo de flores, que tinham colhido no jardim. "Falava-se ainda dessa história três anos depois. Eles a contaram prolixamente, um completando as lembranças do outro, e quando terminaram Frédéric exclamou: - Foi o que nos aconteceu de melhor! -. Sim, talvez. Foi o que nos aconteceu de melhor! disse Deslauriers." Com essa descoberta, o romance chega a seu fim, e este é mais rigoroso que em qualquer narrativa. Com efeito, numa narrativa a pergunta - e o que aconteceu depois? - é plenamente justificada. O romance, ao contrário, não pode dar um único passo além daquele limite em que, escrevendo na parte inferior da página a palavra fim, convida o leitor a refletir sobre o sentido de uma vida.

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Quem escuta uma história está em companhia do narrador; mesmo quem a lê partilha dessa companhia. Mas o leitor de um romance é solitário. Mais solitário que qualquer outro leitor (pois mesmo quem lê um poema está disposto a declamá-lo em voz alta para um ouvinte ocasional). Nessa solidão, o leitor de um romance se apodera ciosamente da matéria de sua leitura. Quer transformá-la em coisa sua, devorá-la, de certo modo. Sim, ele destrói, devora a substância lida, como fogo devora lenha na lareira. A tensão que atravessa o romance se assemelha muito à corrente de ar que alimenta e reanima a chama. O interesse ardente do leitor se nutre de um material seco. O que significa isto? "Um homem que morre com trinta e cinco anos". disse certa vez Moritz Heimann, "é em cada momento de sua vida um homem que morre com trinta e cinco anos." Nada mais duvidoso. Mas apenas porque o autor se engana na dimensão do tempo. A verdade contida na frase é a seguinte: um homem que morre aos trinta e cinco anos aparecerá sempre, na rememoração, em cada momento de sua vida, como um homem que morre com trinta e cinco anos. Em outras palavras: a frase que não tem nenhum sentido em relação à vida real torna-se incontestável com relação à vida lembrada. Impossível descrever melhor a essência dos Personagens do romance. A frase diz que o “sentido” da vida somente se revela a partir de sua morte. Porém o leitor do romance procura realmente homens nos quais possa ler “o sentido da vida”. Ele precisa, portanto, estar seguro de antemão, de um modo ou outro, de que participará de sua morte. Se necessário, a morte no sentido figurado: o fim do romance. Mas de preferência a morte verdadeira. Como esses personagens anunciam que a morte já está a sua espera, uma morte determinada, num lugar determinado? É dessa questão que se alimenta o interesse absorvente do leitor.

Em conseqüência, o romance não é significativo por descrever pedagogicamente um destino alheio, mas porque esse destino alheio, graças à chama que o consome, pode dar-nos o calor que não podemos encontrar em nosso próprio destino. O que seduz o leitor no romance é a esperança de aquecer sua vida gelada com a morte descrita no livro.

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 Segundo Gorki, Leskov é o escritor... mais profundamente enraizado no povo, e o mais inteiramente livre de influências estrangeiras". O grande narrador tem sempre suas raízes no povo, principalmente nas camadas artesanais. Contudo, assim como essas camadas abrangem o estrato camponês, marítimo e urbano, nos múltiplos estágios do seu desenvolvimento econômico e técnico, assim também se estratificam de múltiplas maneiras os conceitos em que o acervo de experiências dessas camadas se manifesta para nós. (Para não falar da contribuição nada desprezível dos comerciantes ao desenvolvimento da arte narrativa, não tanto no sentido de aumentarem seu conteúdo didático, mas no de refinarem as astúcias destinadas a prender a atenção dos ouvintes. Os comerciantes deixaram marcas profundas no ciclo narrativo de As mil e uma noites.) Em suma, independentemente do papel elementar que a narrativa desempenha no patrimônio da humanidade, são múltiplos os conceitos através dos quais seus frutos podem ser colhidos. O que em Leskov pode ser interpretado numa perspectiva religiosa, parece em Hebel ajustar-se espontaneamente às categorias pedagógicas do Iluminismo, surge em Poe como tradição hermética e encontra um último asilo, em Kipling, no círculo dos marinheiros e soldados coloniais britânicos. Comum a todos os grandes narradores é a facilidade com que se movem para cima e para baixo nos degraus de sua experiência, como numa escada. Uma escada que chega até o centro da terra e que se perde nas nuvens - é a imagem de uma experiência coletiva, para a qual mesmo o mais profundo choque da experiência individual, a morte, não representa nem um escândalo nem um impedimento.

"E se não morreram, vivem até hoje", diz o conto de fadas. Ele é ainda hoje o primeiro conselheiro das crianças, porque foi o primeiro da humanidade, e sobrevive, secretamente, na narrativa. O primeiro narrador verdadeiro é e continua sendo o narrador de contos de fadas. Esse conto sabia dar um bom conselho, quando ele era difícil de obter, e oferecer sua ajuda, em caso de emergência. Era a emergência provocada pelo mito. O conto de fadas nos revela as primeiras medidas tomadas pela humanidade para libertar-se do pesadelo mítico. O personagem do “tolo” nos mostra como a humanidade se fez de "tola" para proteger-se do mito; o personagem do irmão caçula mostra-nos como aumentam as possibilidades do homem quando ele se afasta da pré-história mítica; o personagem do rapaz que saiu de casa para aprender a ter medo mostra que as coisas que tememos podem ser devassadas; o personagem “inteligente" mostra que as perguntas feitas pelo mito são tão simples quanto as feitas pela esfinge; o personagem do animal que socorre uma criança mostra que a natureza prefere associar- se ao homem que ao mito. O conto de fadas ensinou a muitos séculos à humanidade, e continua ensinando até hoje às crianças, que o mais aconselhável é enfrentar as forças do mundo místico com astúcia e arrogância. (Assim, o conto de fadas dialetiza a coragem (Mut) desdobrando-a em dois pólos: de um lado Untermut, isto é, astúcia, e de outro Obermut, isto é, arrogância.) O feitiço libertador do conto de fadas não põe em cena a natureza como uma entidade mítica, mas indica a sua cumplicidade com o homem liberado. O adulto só percebe essa cumplicidade ocasionalmente, isto é, quando está feliz; para a criança, ela aparece pela primeira vez no conto de fadas e provoca nela uma sensação de felicidade.

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Poucos narradores tiveram uma afinidade tão profunda pelo espírito do conto de fadas como Leskov. Essas tendências foram favorecidas pelos dogmas da Igreja Ortodoxa grega. Nesses dogmas, como se sabe, a especulação de Orígenes, rejeitada pela Igreja de Roma, sobre a apocatastasis, a admissão de todas as almas ao Paraíso, desempenha um papel significativo. Leskov foi muito influenciado por Orígenes. Tinha a intenção de traduzir sua obra Dos primeiros princípios. No espírito das crenças populares russas, interpretou a ressurreição menos como uma transfiguração que como um desencantamento, num sentido semelhante ao do conto de fada. Essa interpretação de Orígenes é o fundamento da narrativa O peregrino encantado. Essa história, como tantas outras de Leskov, é um híbrido de contos de fadas e lenda, semelhante ao híbrido de contos de fadas e saga, descrito por Ernst Bloch numa passagem em que retoma à sua maneira nossa distinção entre mito e conto de fadas. Segundo Bloch, "nessa mescla de conto de fadas e saga o elemento mítico é figurado, no sentido de que age de forma estática e cativante, mas nunca fora do homem. Míticos, nesse sentido, são certos personagens de saga, de tipo taoísta, sobretudo os muito arcaicos, como o casal Filemon e Baucis: salvos, como nos contos de fada, embora em repouso, como na natureza. Existe certamente uma relação desse tipo no taoísmo muito menos pronunciado de Gotthelf; ele priva ocasionalmente a saga do encantamento local; salva a luz da vida, a .luz própria à vida humana, que arde serenamente, por fora e por dentro". "Salvos, como nos contos de fadas", são os seres à frente do cortejo humano de Leskov: os justos. Pavlin, Figura, o cabeleireiro, o domador de ursos, a sentinela prestimosa - todos eles, encarnando a sabedoria, a bondade e o consolo do mundo, circundam o narrador. É incontestável que são todos derivações da imago materna. Segundo a descrição de Leskov, "ela era tão bondosa que não podia fazer mal a ninguém, nem mesmo aos animais. Não comia nem peixe nem carne, tal sua compaixão por todas as criaturas vivas. De vez em quando, meu pai costumava censurá-la... Mas ela respondia: eu mesma criei esses animaizinhos, eles são como meus filhos. Não posso comer meus próprios filhos! Mesmo na casa dos vizinhos ela se abstinha de carne, dizendo: eu vi esses animais vivos; são meus conhecidos. Não posso comer meus conhecidos".

O justo é o porta-voz da criatura e ao mesmo tempo sua mais alta encarnação. Ele tem em Leskov traços maternais, que às vezes atingem o plano mítico (pondo em perigo, assim, a pureza da sua condição de conto de fadas). Característico,  nesse sentido, é o personagem central da narrativa Kotin, o provedor e Platônida. Esse personagem, um camponês chamado Pisonski, é hermafrodita. Durante doze anos, a mãe o educou como menina. Seu lado masculino e o feminino amadurecem simultaneamente e seu hermafroditismo transforma-se em "símbolo do Homem-Deus".  Leskov vê nesse símbolo o ponto mais alto dia criatura e ao mesmo tempo uma ponte entre o mundo terreno e o supra-terreno. Porque essas poderosas figuras masculinas, telúricas e maternais, sempre retomadas pela imaginação de Leskov, foram arrancadas, no apogeu de sua força, à escravidão do instinto sexual. Mas nem por isso encarnam um ideal ascético; a castidade desses justos tem um caráter tão pouco individual que ela se transforma na antítese elementar da luxúria desenfreada, representada na Lady Macbeth de Mzensk. Se a distância entre Pavlin e essa mulher de comerciante representa a amplitude do mundo das criaturas, na hierarquia dos seus personagens Leskov sondou também a profundidade desse mundo.

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A hierarquia do mundo das criaturas, que culmina na figura do justo, desce por múltiplos estratos até os abismos do inanimado. Convém ter em mente, a esse respeito, uma circunstância especial. Para Leskov, esse mundo se exprime menos através da voz humana que através do que: ele chama, num dos seus contos mais significativos, "A voz da natureza". Seu. personagem central é um pequeno funcionário, Filip FilipovItch, que usa todos os meios a seu dispor para hospedar em sua casa um marechal-de-campo, que passa por sua cidade. Seu desejo é atendido. O hóspede, a princípio admirado com a insistência do funcionário, com o tempo julga reconhecer nele alguém que havia encontrado antes. Quem? Não consegue lembrar-se. O mais estranho é que o dono da casa nada faz para revelar sua identidade. Em vez disso, ele consola seu ilustre hóspede, dia após dia, dizendo que "a voz da natureza" não deixará de se fazer ouvir um dia. As coisas continuam assim, até que o hóspede, no momento de continuar sua viagem, dá ao funcionário a permissão, por este solicitada, de fazer ouvir "a voz da natureza". A mulher do anfitrião se afasta. "Ela voltou com uma corneta de caça, de cobre polido, e entregou-a a seu marido. Ele pegou a corneta, colocou-a na boca e sofreu uma verdadeira metamorfose. Mal enchera a boca, produzindo um som forte como um trovão, o marechal-de-campo gritou: - Pára! Já sei, irmão, agora te reconheço! És o músico do regimento de caçadores, que como recompensa por sua honestidade enviei para vigiar um intendente corrupto. - É verdade, Excelência, respondeu o dono da casa. Eu não queria recordar esse fato a Vossa Excelência, e sim deixar que a voz da natureza falasse." A profundidade dessa história, escondida atrás de sua estupidez aparente, dá  uma idéia do extraordinário humor de Leskov.

Esse humor reaparece na mesma história de modo ainda mais discreto. Sabemos que o pequeno funcionário fora enviado "como recompensa por sua honestidade... para vigiar um intendente corrupto". Essas palavras estão no final, na cena do reconhecimento. Porém no começo da história lemos o seguinte sobre o dono da casa: "os habitantes do lugar conheciam o homem e sabiam que não tinha uma posição de destaque, pois não era nem alto funcionário do Estado nem militar, mas apenas um pequeno fiscal no modesto serviço de intendência, onde, juntamente com os ratos, roia os biscoitos e as botas do Estado, chegando com o tempo 'a roer para si uma bela casinha de madeira". Manifesta-se assim, como se vê, a simpatia tradicional do narrador pelos patifes e malandros. Toda a literatura burlesca partilha essa simpatia, que se encontra mesmo nas culminâncias da arte: os companheiros mais fiéjs de Hebel são o Zumdelfrieder, o Zundelheiner e Dieter o ruivo. No entanto, também para Hebel o justo desempenha o papel principal no theatrum mundi. Mas, como ninguém está à altura desse papel, ele passa de uns para outros. Ora é o vagabundo, ora o judeu avarento, ora o imbecil, que entram em cena para representar esse papel. A peça varia segundo as circunstâncias, é uma improvisação moral.

HebeI é um casuísta. Ele não se solidariza, por nenhum preço, com nenhum princípio, mas não rejeita nenhum, porque cada um deles pode se tornar um instrumento dos justos. Compare- se essa atitude com a de Leskov. "Tenho consciência", escreve ele em A propósito da Sonata de Kreuzer, "de que minhas idéias se baseiam muito mais numa concepção prática da vida do que na filosofia abstrata ou numa moral elevada, mas já. me habituei a pensar assim." De resto, as catástrofes morais que ocorrem no universo de Leskov se relacionam com os incidentes morais que ocorrem no universo de Hebel como a vasta e silenciosa torrente do Volga se relaciona com o riacho tagarela e saltitante que faz girar o moinho. Entre as narrativas históricas de Leskov existem várias nas quais as paixões são tão destruidoras como a ira de Aquiles ou o ódio de Hagen. É surpreendente verificar como o mundo pode ser sombrio para esse autor e com que majestade o mal pode empunhar o seu cetro. Obviamente, Leskov conheceu estados de espírito em que estava muito próximos de uma ética antinomística, e esse é talvez um dos seus poucos pontos de contato com Dostoievski. As naturezas elementares dos seus Contos dos velhos tempos vão até o fim em sua paixão implacável. Mas esse fim é justamente o ponto em que, para os místicos, a mais profunda abjeção se converte em santidade.

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Quanto mais baixo Leskov desce na hierarquia das criaturas, mais sua concepção das coisas se aproxima do misticismo. Aliás, como veremos, há indícios de que essa característica é própria da natureza do narrador. Contudo poucos ousaram mergulhar nas profundezas da natureza inanimada, e não há muitas obras, na literatura narrativa recente, nas quais a voz do narrador anônimo, anterior a qualquer escrita, ressoe de modo tão audível como na história de Leskov. A alexandrita. Trata-se de uma pedra semipreciosa, o piropo. A pedra é o estrato mais ínfimo da criatura. Mas para o narrador ela está imediatamente ligada ao estrato mais alto. Ele consegue vislumbrar nessa pedra semipreciosa, o piropo, uma profecia natural do mundo mineral e inanimado dirigida ao mundo histórico, na qual ele próprio vive. Esse mundo é o de Alexandre II. O narrador - ou antes, o homem a quem ele transmite o seu saber - é um lapidador chamado Wenzel, que levou sua arte à mais alta perfeição. Podemos aproximá-lo dos ourives de Tula e dizer que, segundo Leskov, o artífice perfeito tem acesso aos arcanos mais secretos do mundo criado. Ele é a encarnação do homem piedoso:- Leskov diz o seguinte desse lapidador: "Ele segurou de repente a minha mão, na qual estava o anel com a alexandrita, que como se sabe emite um brilho rubro quando exposta a uma iluminação artificial, e gritou: - Olhe, ei-la aqui, a pedra russa, profética... O siberiana astuta! Ela sempre foi verde como a esperança e somente à noite assume uma cor de sangue. Ela sempre foi assim, desde a origem do mundo, mas escondeu-se por muito tempo e ficou enterrada na terra, e só consentiu em ser encontrada no dia da maioridade do czar Alexandre, quando um grande feiticeiro visitou a Sibéria para achá-la, a pedra, um mágico... - Que tolices o Sr. está dizendo! interrompi-o. Não foi nenhum mágico que achou essa pedra, foi um sábio chamado Nordenskjõld! - Um mágico! digo-lhe eu, um mágico, gritou Wenzel em voz alta. Veja, que pedra! Ela contém manhãs verdes e noites sangrentas... Esse é o destino, o destino do nobre czar Alexandre! Assim dizendo, o velho Wenzel voltou-se'para a parede, apoiou-se nos cotovelos... e começou a soluçar".

Para esclarecer o significado dessa importante narrativa, .não há melhor comentário que o trecho seguinte de Valéry, escrito num contexto completamente diferente. "A observação do artista pode atingir uma profundidade quase mística. Os objetos iluminados perdem os seus nomes: sombras e claridades formam sistemas e problemas particulares não dependem de nenhuma ciência, que não aludem a nenhuma prática, mas que recebem toda sua existência e todo seu valor de certas afinidades singulares entre a alma, o olho e a mão de uma pessoa nascida para surpreender tais afinidades em si mesmo e para as produzir.”

A alma, o olho e a mão estão assim inscritos no mesmo campo. Interagindo, eles definem uma prática. Essa prática deixou de nos ser familiar. O papel da mão no trabalho produtivo tornou-se mais modesto, e o lugar que ela ocupava durante a narração está agora vazio. (Pois a narração, em seu aspecto sensível, não é de modo algum o produto exclusivo da voz. Na verdadeira narração, a mão intervém decisivamente com seus gestos apreendidos na experiência do trabalho, que sustentam de cem maneiros o fluxo do que é dito). A antiga coordenação da alma, do olhar e da mão, que transparece nas palavras de Valéry, é típica do artesão, e é ela que encontramos sempre, onde quer que a arte de narrar seja praticada. Podemos ir mais longe e perguntar se a relação entre o narrador e sua matéria - a vida humana - não seria ela própria uma relação artesanal. Não seria sua tarefa trabalhar a matéria-prima da experiência - a sua e a dos outros - transformando-a num produto sólido, útil e único? Talvez se tenha uma noção mais clara desse processo através do provérbio, concebido como uma espécie de ideograma de uma narrativa. Podemos dizer que os provérbios são ruínas de antigas narrativas, nas quais a moral da história abraça um acontecimento, como a hera abraça um muro.

Assim definido, o narrador figura entre os mestres e os sábios. Ele sabe dar conselhos: não para alguns casos, como o provérbio, mas para muitos casos, como o sábio. Pois pode recorrer a um acervo de toda uma vida (uma vida que não inclui apenas a própria experiência, mas em grande parte a experiência alheia. O narrador assimila à sua substância mais íntima aquilo que sabe por ouvir dizer). Seu dom é poder contar sua vida; sua dignidade é contá-la inteira. O narrador é o homem que poderia deixar a luz tênue de sua narração consumir completamente a mecha de sua vida. Daí a atmosfera incomparável que circunda o narrador: em Leskov como em Hauff, em Poe como em Stenvenson. O narrador é a figura na qual o justo se encontra consigo mesmo.

1936

BENJAMIN, Walter. O Narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov.
In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 197-221.