Outro dia, após
sair de uma festa de aniversário de uma amiga atriz e cantora que admiro muito,
um amigo e eu decidimos andar em direção à Av. Paulista pra encontrar algum bar
e seguir papeando, bebendo, talvez varar a noite.
Enveredamos pela
Rua Augusta, conversando sobre o conceito de “flanar” (andar sem rumo e sem
pressa, pelo prazer de andar e observar a cidade).
Em dado momento,
aproximadamente 2h da madrugada, já próximos à Paulista fomos abordados por um
cara.
Antes que
terminasse sua primeira frase eu o reconheci: Carlos Eduardo. Dinamite.
O cara que
encontrei em setembro e me motivou a escrever o texto “Na rua”.
Pra resumir bem:
Carlos Eduardo é um morador de rua, engajado na organização de comunidades na rua, onde todos compartilhavam o que tinham e se ajudavam mutuamente. Sua última comunidade (umas 20 pessoas) permaneceu junta por aproximadamente 3 anos na região
próxima do metrô Paraíso. Em julho eles foram atacador por uma gangue de skinheads e se separaram. Desde então ele vagou um tempo com um amigo e depois passou
a andar sozinho.
Havíamos tido uma
longa conversa na primeira vez que nos vimos e agora a vida nos colocava de
novo no caminho um do outro.
Ele estava um pouco
mais “marcado” do que no dia em que nos conhecemos.
Perguntei se ele se
lembrava de mim, falei de nosso outro encontro e ele se recordou. Me pediu pra
contar pro meu amigo como ele era. Meu camarada estranhou um pouco a situação
mas logo relaxou, conforme eu contava resumidamente sobre nosso primeiro
encontro e sobre como eu considerava o Carlos uma pessoa forte.
“Fala pra ele. Eu
não era um cara que lutava pelos meus ideais? Que tentava fazer a diferença?”
Depois de algum
tempo falando sobre isso ele confessou: “To cansado da vida”.
Ele dizia estar
cansado de se dar mal por pensar da forma como pensava, por acreditar no que
acreditava e como isso o impedia de se adaptar à sociedade.
Um pouco bêbado, perguntou
se não podíamos pagar uma pinga pra ele.
Pediu desculpas por
estar bebendo, pois como havia dito, tava cansado e precisava desligar um pouco.
“É bom sumir. Assim
ninguém te enche o saco.”
Subimos a rua,
achei um bar e entramos pra comprar a pinga e seus outros três pedidos, que ele fez um pouco encabulado: Um
cigarro, um isqueiro e uma coxinha.
Compramos duas
coxinhas.
Ele esperava do lado de fora – “Faz uma experiência: Fala pro cara
do bar que as coisas são pra um morador de rua pra ver o que ele faz.”
Eu preferi dispensar a experiência.
Ao entregarmos as coisas, ele guardou as coxinhas dentro do saco transparente (onde levava umas latas que havia pegado pelo caminho) e perguntou “Posso virar a pinga?”
Ao entregarmos as coisas, ele guardou as coxinhas dentro do saco transparente (onde levava umas latas que havia pegado pelo caminho) e perguntou “Posso virar a pinga?”
Claro.
Dentre as coisas
que conversávamos, ele falava sobre porque estava tão triste. Sempre com um
olhar bravo e questionador, com a voz firme.
“Eu não to inserido
nisso aqui (apontando pra cidade ao
redor) Não quero estar”
“É muito difícil
acreditar numa coisa e não poder falar. Então, lamentavelmente, é melhor eu
ficar quieto”
“Eu tinha uma família, agora não tenho mais”
“Eu tinha uma família, agora não tenho mais”
“Eu to bebendo pra
vestir uma máscara, pra ser o que as pessoas querem ver. Ninguém quer alguém
falando pra elas olharem pro mundo”
“Nasci pra ser
líder, é minha natureza, eu sou assim”
Às vezes ele ria
nervoso, com muita tristeza e descrença nos olhos, mas sem perder a força no
discurso.
Falei pra ele da
ocupação do movimento sem-teto do centro num conjunto de prédios na Av. Prestes
Maia, na Luz, onde uns amigos montaram um centro cultural. Falo sobre como ele
pode achar um espaço e pessoas pra tentar lutar pelo que ele acredita, até
consigo um papel com uma garçonete pra anotar o endereço. Coloquei meu telefone também.
Ele não dá muita
importância pro endereço. Insisto nesse ponto várias vezes ao longo da conversa, sempre que
ele retoma o ponto da solidão.
“Cara, é foda.
Tenta aparecer num lugar desses sendo um morador de rua. Não é lindo assim, te
deixam entrar numa boa”
Conversa vai,
conversa vem.
“Você (aponta pro meu amigo) me pagaria outra
pinga?”
“Acho melhor não” respondeu ele.
“Acho melhor não” respondeu ele.
“Gostei de você. Da
sua certeza. E você?” (apontou pra mim)
Eu pagaria.
“Por que?”
Porque você tá
pedindo e eu não tenho moral pra te julgar, pra dizer que isso é errado.
Entrei comprei outra
dose de velho barreiro e um chocolate lancy.
Saí e entreguei pra
ele. Acho que um chocolate caia bem.
“Caaaara! Meu
irmão! Como você pensou nisso.”
Ele ficou muito
agradecido, meio inconformado.
“Por que você faz
isso? Por que você se compadece?”
Não sei cara. É minha natureza.
Não sei cara. É minha natureza.
Virou de novo a
pinga.
“Eu viro pra ficar
doidão logo”
Acendi um cigarro
pra nós. Passei pra ele.
“Não sei o que Deus
fez contigo, que te deu a ingenuidade. Só que às vezes, lamentavelmente, a
ingenuidade pode ser perigosa.”
Então ele se virou
pra nosso amigo. “Sem saber, ele me deu um abraço, em mim, que sou um cara que
tá na rua, que ele conheceu do nada”
“Esse encontro é
muito importante. Isso meus irmãos, é a coisa mais importante que existe.”
...
Não se enquadrar.
Independente.
Ir embora.
Viver.
...
Seguimos nosso papo
até umas 4h40’, hora do metrô abrir.
Ele nos passou seu
e-mail. (“A galera se assusta quando eu falo que tenho e-mail. Não sou burro, só não consigo ver sempre.”
Então nos
despedimos.
“Seja forte”
Dissemos um pro outro, mais uma vez.
Demos um forte
abraço.
Ao descer a rua ele
fez mais um pedido (o que mais marcou, aliás):
“Não se esqueçam de
mim!”
Como esquecer?
continua...