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24.9.12

Cúmplices

Eu tenho um plano, meu par:

Para ele dar certo precisamos ser bons ouvintes.
Atentar ao que faz o outro suspirar, o que o enrubrece (de cólera ou vergonha) ou o faz sorrir amarelo. 
Entender porque o outro vê o mundo assim e não assado.
Querer saber das suas viagens e querer viajar junto. Pra praia, pra Rita Lee, pros bons sonhos, pro Japão.

O sucesso do plano depende de sermos bons amantes. De olhos nos olhos, beijos na nuca, mãos tocando as faces e desejo de atravessar a pele, de querer sorrir no seu sorriso, de compartilhar um êxtase.


Em todos os passos precisamos ser bons cúmplices. 
Cuidar do descanso do outro, fazê-lo expandir seus limites, saber abaixar quando a espada do outro vai passar e dar "pézinho" pra ele pular o muro.

O resultado do plano é meio incerto. Tudo que ele garante por enquanto é um bom presente.

E aí?
Bora?


8.8.12

Na medida


Tem horas que erro.
Insisto num assunto que já passou, piso no pé, falo na hora errada, não entendo o tom da canção.

Tem horas que emburro. Não entendo a brincadeira, me da medo, me sinto errado e fico à mercê das minhas meias palavras.

Às vezes afasto a poesia e me assusto com a cara seca que as coisas ao redor ficam. Trabalho pra comer, como pra trabalhar, anseio o mês que vem e só.

Tem horas em que só preciso de um pouco de calma.
E a companhia é boa.
Às vezes menos direta mesmo- só saber que você ta nadando na raia do lado já basta.

E vou pintando as cores de volta, tiro uma música nova, me empolgo com um projeto que surge. E o barco segue seu rumo. Sossegado como um passeio de bicicleta numa tarde de terça.



10.7.12

Simples assim




Felicidade  (Marcelo Jeneci)
Haverá um dia em que você não haverá de ser feliz.
Sem tirar o ar, sem se mexer, sem desejar como antes sempre quis.
Você vai rir, sem perceber, felicidade é só questão de ser.
Quando chover, deixar molhar pra receber o sol quando voltar.
Lembrará os dias que você deixou passar sem ver a luz.
Se chorar, chorar é vão porque os dias vão pra nunca mais.
Melhor viver, meu bem, pois há um lugar em que o sol brilha pra você.
Chorar, sorrir também e depois dançar, na chuva quando a chuva vem.
Melhor viver, meu bem, pois há um lugar em que o sol brilha pra você.
Chorar, sorrir também e dançar.
Dançar na chuva quando a chuva vem.
Tem vez que as coisas pesam mais do que a gente acha que pode aguentar.
Nessa hora fique firme, pois tudo isso logo vai passar.
Você vai rir, sem perceber, felicidade é só questão de ser.
Quando chover, deixar molhar pra receber o sol quando voltar.
Melhor viver, meu bem, pois há um lugar em que o sol brilha pra você.
Chorar, sorrir também e depois dançar, na chuva quando a chuva vem.
Melhor viver, meu bem, pois há um lugar em que o sol brilha pra você.
Chorar, sorrir também e dançar.

Dançar na chuva quando a chuva vem                                                                                                   Dançar na chuva quando a chuva vem                                                                                                  Dançar na chuva quando a chuva vem                                                                                            Dançar na chuva quando a chuva vem







(vale a pena ver o clipe oficial, que por algum motivo o blogger não me deixa postar aqui...)http://www.youtube.com/watch?v=s2IAZHAsoLI&feature=related

1.7.12

Ano Novo de Inverno

Eu não gostava de queijo e de Caetano.
Não sabia nadar. 
Não ia em médico. 

E andava de bicicleta muito mal.

Prestes a fazer bodas de prata com a vida declaro: o homem se transforma.

Minhas resoluções de ano novo?
- Não ser neurótico
- Evitar pactos de mediocridade
- Encarar de frente os medos

Que como diria o guru Roberto Freire:

"O medo é o contrário do orgasmo"


E desse amor?


Eu daqui não sei amar de outro jeito.
Já soube, dum tipo que às vezes deixava na mão, por demais egocêntrico - e tinha cá pra mim que precisava ser menos ansioso (mas não menos intenso), menos cercado (mas não menos cuidadoso), menos egoísta (mas não menos pra meu bem).


Tá dando numa coisa gostosa, viu?
E minha felicidade vai sendo colhida como resultado de esforço, atenção e disponibilidade. 


Na hora dos apertos, não ajo com paciência. 
É mais compreensão de como é o tempo de cada coisa (isso é paciência?), de que tem horas que não tem resposta, não tem conversa. 


A dois vai surgindo o sentido do que precisa de sentido.


Pego umas palavras emprestadas do Vinícius (que reencontrei com uma irmã canceriana) pra saudar essa filha de capricórnio que passeia de través pela minha vida - e que não gosta desse lance de signo.




Soneto do Amor Total 
(Vinícius de Moraes - se fosse meu chamaria "Soneto do Amor: to Tal" -] )


Amo-te tanto, meu amor ... não cante
O humano coração com mais verdade ...
Amo-te como amigo e como amante
Numa sempre diversa realidade.


Amo-te afim, de um calmo amor prestante
E te amo além, presente na saudade.
Amo-te, enfim, com grande liberdade
Dentro da eternidade e a cada instante.


Amo-te como um bicho, simplesmente
De um amor sem mistério e sem virtude
Com um desejo maciço e permanente.


E de te amar assim, muito e amiúde
É que um dia em teu corpo de repente
Hei de morrer de amar mais do que pude.

30.6.12

Frugal

As tarde de eu menino
(nem míope eu era)

moram nesse calorzinho bom de ver de sol de tarde.

Se o adulto relaxa, dá pra ouvir baixinho a luz dizendo:
"Vem brincar..."




30.5.12

O fim das grandes ideias

Ando boicotando minhas ações.
Remoendo uns pensamentos vejo que não tenho sido muito generoso com minhas ideias - que tem andado não só sem acento como também sem assento onde repousar.

Sabe quando você fica se cobrando pra ter ideias geniais?
Isso tem me feito propor menos dentro dos grupos dos quais faço parte (que atualmente são muitos e maravilhosos) e me deixado mais reativo, receptivo - o que tem suas vantagens. 

Mas e o meu tom?


Sei que é burrice essa cobrança de uma "genialidade". Se você busca algo só olhando pra cima nunca vai ver todas as ideias rasteiras que estão ali, só esperando para para serem amadurecidas.


Bom, acho que é isso:
Parar de mirar um ideal pronto, ter clareza dos meus desejos e partir do simples.



Pra me ajudar, segue um trecho de um ensaio do livro Profanações, de Giorgio Agambem:

"Desejar

Desejar é a coisa mais simples e humana que há. Por que, então, para nós são inconfessáveis precisamente nossos desejos, por que nos é tão difícil trazê-los à palavra? Tão difícil que acabamos mantendo-os escondidos, e construímos para eles em algum lugar em nós, uma cripta, onde permanecem embalsamados, à espera.

Não podemos trazer à linguagem nossos desejos porque os imaginamos. Na realidade, a cripta contém apenas imagens, como é o caso de um livro de figuras para crianças que ainda não sabem ler, caso das images d'Epinal de um povo analfabeto. O corpo dos desejos é uma imagem. E o que é inconfessável no desejo é a imagem que dele fizemos.



Comunicar a alguém os próprios desejos sem imagens é brutal. Comunicar-lhes as próprias imagens sem os desejos é fastidioso (assim como narrar os sonhos ou as viagens). Mas fácil, em ambos os casos. Comunicar os desejos imaginados e as imagens desejadas é a tarefa mais difícil. Por isso a postergamos. Até o momento em que começamos a compreender que ficará para sempre não cumprida. E que o desejo inconfesso somos nós mesmos, para sempre prisioneiros da cripta."


E aí? Bora sair desse mundinho e relaxar?



9.4.12

Un pueblo sin piernas pero que camina

Olhando pro mundo ao redor, lembrando da ofensa que é não aprendermos a falar espanhol desde a infância (enquanto inglês se tornou obrigatório no ensino fundamental 1, na rede pública), pra podermos nos comunicar melhor com os hermanos de latinoamerica, tão parecidos con nosotros.





19.3.12

Das liberdades


17/03 - 19h

Eu aqui.
Sentado no parquinho.
No meio da cidade, fim de tarde.
Junto comigo, um menino, de uns 5 anos.
Eu sentado no balanço e o menino pulando as poças de lama da chuva que passou.
Acendo um cigarro de prosa, pro tempo passar. Atendo o telefone que toca algumas vezes pra falar de trabalho.
O menino, sem medo, sobe no trepa-trepa, arrisca ficar de ponta cabeça, com uma habilidade natural.
“Relaxa" ele me diz, balançando os braços, pendurado pelas pernas.
"Eu to relaxado", resmungo baixinho.
Ele dá uma risada leve e vira os olhos como quem diz "ok, não vou insistir". Então dá um balanço pra trás, pra frente (põe a ponta da língua pra fora entre os lábios apertados), pra trás e quando volta pra frente segura com as mãos em outra barra mais alta e se iça pra cima. Sobe até o topo do brinquedo.

Eu ensaiando roer unhas, como um hábito que larguei, mas que a memória corporal insiste em trazer de volta. Não chego a morder, mas batuco os dentes, dedo por dedo.
Ele abre os braços e repete "Relaaaaaxa" e ergue os braços.

Esse moleque sabichão, que tem os cabelos bem pretos, riso solto (e não usa óculos), espuleta (mas pacífico), me contempla, fascinado.
"Como você se virava antes, hein? Devia ser ser mó chato!"

Ele tá certo.

Ele é a minha liberdade.

Sabe que eu to tenso porque, enquanto nós estamos aqui no parquinho esperando, você tá num dos prédios ao redor, em trabalho de parto.
Você está parindo a sua liberdade.

E eu, que acompanhei o finalzinho dessa gestação, to aqui ansioso, querendo te apoiar, mas não sei qual prédio é (e as enfermeiras não me deixariam entrar na sala, não sou o pai – não tem pai)
Eu sei que você tá preparada mas dá um aperto a espera.

Espero.

E minha liberdade brinca, esperando também. Eu prometi que a sua liberdade, depois que nascesse, podia vir brincar.

A minha liberdade, que já te conheceu com um barrigão, ficou super feliz ao saber que você queria apresentá-lo ao seu bebê que vinha vindo.

Claro que, como eu disse, é um recém-nascido, não vem ao mundo já todo serelepe. Apesar desse troço de parir liberdade ser uma coisa de louco.
Acontece às vezes da bichinha já nascer andante, falante. Outras vezes demora pra socializar.
Eu tocava a tua barriga e a sua liberdade já chutava forte, dando sinais de que queria logo passear.
Na última vez que nos vimos eu não imaginava que seria assim, de repente você me liga, em trabalho de parto, dirigindo pro hospital no meio da chuva.

Então eu peguei o moleque e corri pra rua pra esperar você ligar.

E eu sei que trabalho de parto pode ser demorado.
Já acompanhei alguns, li sobre outros tantos.
O ruim é essa sensação de que não há o que fazer pelo outro. Agora a pessoa está por conta própria.

Meu menino me lembra disso e eu, já no terceiro cigarro de página repito pra nós "Eu sei, eu sei..."

"Será que ela vai ser bonita? Ou será que vai ter cara de joelho?" eu pergunto
E ele, descendo pelo escorregador "Que pergunta beeeeeesta! Vai ser linda. Como sempre são. Se você achar que tem cara de joelho e isso for um problema, vai ser problema seu!"

"Ela tem que ter a cara da mãe", expiro. "Você não fica ansioso?" eu pergunto.
Ele sorri e dá de ombros. Comenta enquanto sobe num balanço: "Que bobo, você..."

Hunf... eu penso em responder, articulo uns argumentos quando ele completa:
"Se ela não vier eu te pago um sorvete."
"Eu não quero um sorvete!" Quase grito
"Então relaxa!" Ele não ergue a voz. Apenas a enche de autoridade.
Autoridade de uma criança que sabe o que diz. Que sabe como são as coisas. Que só quer brincar.

Respiro um pouco.
Me acalmo.

No final do quarto cigarro de história, imagino eu e você num parque, levando nossas liberdades pra um passeio.
Nós dois caminhando e as duas rolando na grama, jogando terra no cabelo uma da outra, se divertindo antes do pôr-do-sol.
Sorrio com o pensamento.
Relaxo.
E espero...

20h26


14.3.12

Amistosidade


Ele só quis se deitar com os olhos dela
Com sua respiração, seus pensamentos

Cada um com sua respiração
Trocando os ares entre si quando lhes convém
Numa brincadeira de se sentir sem o toque
Mas desta vez também sem anteparos e distâncias.

Que é pra nada haver entre os dois
(nem ansiedade, nem egoísmos, nem exigências, nem medo)

E - não havendo nada – eles possam habitar o
lugar comum do silêncio de olhos nos olhos

E...
passado o silêncio...

sigam amando


suas afinidades, suas presenças, suas palavras, suas brincadeiras, seus carinhos

Como já sabem fazer profundamente
Que o tempo é só uma das dimensões da vida.









1.3.12

Preâmbulo metalinguístico


Nos últimos tempos eu andava sentindo um desconforto em escrever crônicas.
Isso era decorrente de uma série de transformações pelas quais tenho passado nos últimos meses.

Tenho trabalhado em transformar o conceito de “amor” na minha vida.
Forcei-me a escrever mais poesia, tentando fugir do formato racionalizante da crônica e tentando ser mais selvagem, intuitivo, sensorial. Em suma, menos cabeçudo.
Exatamente as mesmas transformações que buscava trazer para os meus sentimentos.

O desejo de operar tais mudanças no meu modus vivendi nasceu, em grande parte, de uma enorme ferida amorosa e também de um período de pouca clareza do meu fazer artístico.

O tratamento para a ferida amorosa passou pela massoterapia, o contato com o livro “Ame e dê vexame” de Roberto Freire, bons encontros comigo e com outros e, mais tarde, a própria retomada das rédeas da arte na minha vida.

Uma das minhas características que veio à tona no processo de cura foi a capacidade que minha razão tem de me pregar peças. Muitas vezes me pego agindo (embasado por uma suposta racionalidade) de formas que só ferem o amor (meu pelos outros, dos outros por mim e meu por mim mesmo)
Logo mais eu vou falar sobre que “amor” é esse.

Na tentativa de expurgar os racionalismos que me atrapalhavam de viver um amor mais leve, acabei me afastando um pouco das crônicas, buscando a fluência da poesia, seus mistérios e sua incerteza.
Levei isso inclusive para o meu trabalho em cena, me sentido mais confortável na dança do que na representação.

Acho que agora finalmente me sinto a vontade pra voltar desse mergulho – sem sair dessas águas.
Depois de vivências escritas e amorosas que me levaram a transitar fora da minha zona de conforto, volto a escrever agora de um lugar que me é familiar (mas não por isso seguro – como um escalador acostumado com o Everest. A montanha não se torna dócil só porque já foi escalada mais de uma vez)

Um dia desses estive numa palestra do músico José Miguel Wysnick, na qual ele falou sobre o desafio que havia se proposto quando, a convite do jornal “O Globo” do Rio de Janeiro, passou a escrever uma crônica por semana.
Ele falou sobre seu prazer no formato da crônica, em poder falar sobre coisas que não estão ligadas aos meios de produção.
Enquanto a notícia se produz e se vai com violenta velocidade (afinal de contas, ela só se sustenta enquanto for news), a crônica é um recorte no tempo, um espaço para a filosofia no cotidiano.
Ao mesmo tempo, é um desafio falar não só do que já é senso comum, só do que está pronto.

Fiquei admirado com essa determinação em se desafiar retoricamente e, como depois de superadas minhas crises tenho vivido momentos de me propor desafios (triátlon, poliamores, nomadismos), achei por bem voltar a escrever crônicas, sem medo da razão.
Abraçando essa minha forma de expressão tão querida.

Admiti que minha poesia habita minhas crônicas (não que ela não dê seus passeios fora de casa, mas aqui ela tem um aconchego todo dela, sai espontânea e corre por aí), e agora pretendo começar uma nova fase de escrita.

Acho que é isso.
Preâmbulo concluído.
Vamos ao que interessa.

23.2.12

Hold Hands



Alguém pra vestir minhas camisas
Alguém que dê um pulo de alegria quando eu ligar
Alguém pra eu ver dormir
Café da manhã com a cabeça no ombro
Criar uma nova gíria
Matar uma tarde de terça
Hesitar antes de uma breguice, depois falar
Fazer uma porção pra dois

Tudo em um









23.1.12

Vida Inteligente - Parte II


Hotel.
Nem lembro mais que cidade, foram muitas.
Toca meu celular.
Chamada a cobrar. Para aceitá-la, continue na linha após a identificação.
“Cauê? Aqui é um morador de rua, não sei se você se lembra do Cadu?”
Claro camarada, diga lá.
“Velho, eu queria saber se você ou seu amigo tem um tênis velho pra me arranjar. É que eu decidi que vou pra Ubatuba trabalhar num quiosque de um amigo na virada e vou ter que andar pra caramba pra chegar lá.”

Acho que não falei no outro texto: no verso do papel onde anotei o endereço da ocupação da Prestes Maia deixei meu telefone.
Ele tinha falado: “Se eu ligar, vai ser a cobrar!”

Combinamos de nos encontrar segunda-feira no metrô São Joaquim, 12h. Ele disse que estaria por ali para almoçar num albergue da prefeitura.

Quando nos encontramos ele carrega um E.V.A. fino enrolado com uns fios de cobre, com um cobertor e uma blusa dentro. (“O cara na rua, quando tem uma blusa, é o cara mais feliz do mundo. Já quase morri de hipotermia.”)

Agradece muito pelo tênis (levei também umas meias).
Está bem mais sossegado do que em nosso último encontro.
“Cara, me desculpa por eu estar bêbado naquele dia, eu não tenho essa hábito”.
Sossega cara, imaginei que você tava precisando.

Vamos andando, ele fala que não conseguiu a senha pra almoçar lá, mas quer me levar pra conhecer o lugar. Pergunto se já acabaram as senhas, tão “cedo”. “Se você não chega até umas 7h da manhã você não consegue, vem muita gente”.

No caminho passamos por um morador de rua, meio transtornado, com um pedaço de pau na mão.
“O que um cara desses quer, né? Fazer merda. O triste é que todo mundo pega um cara desse de exemplo pra falar do morador de rua. Mas fica sossegado, ninguém vai fazer nada contigo enquanto cê tiver comigo”

Vamos pra uma ponte ali perto do metrô.
Sobre a ponte, bem no meio, uma escadinha levando pra dentro da ponte.
Descendo a escada há uma porta com uma placa. “Centro de Acolhimento de Adultos”, símbolo da prefeitura e tal.
É bem surreal. Eu já tinha passado sobre essa ponte e nunca tinha reparado nessa entrada. A sensação é de que vou entrar no mercado goblin, escondido às vistas de todos.
Pra entrar comigo e sem senha o Cadu passa um conversa no segurança/porteiro, que já o conhece.
Dentro dessa ponte, um salão grande com umas 50 pessoas comendo em mesas e andando, não consigo apreender muito, estou ainda meio surpreso com a “passagem secreta” pela qual passei. Ficamos alguns segundos na entrada e ele logo fala pra sairmos.

Falo que vou pagar um almoço pra gente,
Vamos subindo em direção a vergueiro, achamos um restaurante/padaria com PF, pedimos.

“Eu to precisando me afastar um pouco disso aqui, de São Paulo. Trombei uns skinheads outro dia, tacaram um pedra em mim do outro lado da rua, mas consegui enrolar eles no papo, disse que sou nacionalista e tal, que por mim virava careca também, aí vazei”
“Tá muito perigoso ficar por aqui. Sorte que não trombei um dos caras da outra vez, por que ficaram um tempo me caçando.”
“To cansado de lutar pela revolução social sozinho. Aí eu penso: vou deixar o cabelo e barba crescer e vou viver loucão, que nem uns que tem por aí. Não. Melhor sumir um pouco, tomar um ar. Lá em Ubatuba tem esse amigo que tem um quiosque e precisa de gente pro ano novo. Aí eu junto forças, pra voltar. Vou voltar a estudar, fiz minha matrícula num supletivo.”

Papo vai, papo vêm, falo pra ele que sou ator. Ele diz que tá surpreso com quantos “teatros” ele tem visto na rua ultimamente. Falo da lei de fomento, da quantidade de grupos em Sampa.
“Todo corpo tem uma alma, e o teatro podia ser a alma da revolução!”
“Eu queria fazer uma peça que fizesse as pessoas conversarem depois, sobre como o mundo pode ser diferente.”
Falo pra ele sobre Brecht (“Por que você não falou do Boal?” me questionaram quando contei essa história. Burrada minha), sobre as peças didáticas.
“Cara, não é a primeira vez que converso com alguém que estudou e falam que alguém já realizou minhas idéias. É porque o mundo pensa parecido. Em todo canto tem alguém que percebe como são as coisas e pensa em como mudar, e são as mesmas soluções.”
“Eu tinha um caderno com muita coisa escrita, mas até isso o policial do Limpeza Urbana me tomou, junto com meu carrinho.”

Falamos sobre os skinheads. Cabeças que querem se expressar, muita energia pra gastar, mas mal direcionada.
“Eu tentei ser pastor, assistente social, diversas coisas pra poder ajudar a encaminhar as pessoas, mas quando eu vejo algo errado eu falo, e aí os caras que mandam não me querem por perto. E eu perco a vontade de estar num lugar onde não querem melhorar.”

Ele come metade da comida e pede pra embrulhar o resto. (“É bom garantir a próxima refeição, né”)

Seguimos andando, passamos pelo Centro Cultural e ele me conta que era freqüentador, junto com a galera que morava na rua com ele. Ele me mostra um lugar onde a galera dormia ali perto, super escondido.
Dentro desse espaço (um vão entre um canteiro e um prédio) alguns colchões e cobertores. “Sempre tem alguém que vem pra cá à noite, dá pra deixar suas coisas que ninguém mexe. O problema é que o Limpeza Urbana descobriu o lugar, então às vezes eles fazem uma patrulha e levam tudo”
Outra surpresa, esse lugar enorme, escondido das vistas de todos. Uma brecha no meio da realidade do cidadão comum. “Se você conhecer mais alguém que tá na rua e não tem onde ficar, se ele for de bom coração, fala pra ele ficar aqui”

Ele fala sobre como eles eram felizes, juntos na rua. Como havia uma verdadeira comunhão. Quando todos tinham tão pouco, mas o fato de compartilharem fazia com que um pouquinho virasse muito.

Uma vez, eles estavam conversando ao fazer uma janta (“dessa vez tinha quase trinta pessoas”), com as panelas e fogareiros improvisados, quando um “mendigão, eremita mesmo” que nunca falava nada e só de vez em quando se juntava com eles, começou a gritar “O amor! Ninguém se ama mais!”

“É real. As pessoas não amam umas as outras. Compartilhar é a coisa mais importante do mundo.”

“Mas eu comecei a fazer mal pras pessoas, se eu não tivesse juntado todo mundo não tínhamos sido atacados”
Não se culpa cara.
“Eu sei, mas foi melhor se separar. Eu e o Samuel continuamos andando juntos, mas ele tem esses problemas com drogas, fica paranóico e era muito egoísta, se tinha um suco, só dividia comigo, não com os outros. Mas aí ele ficou bravo comigo também, deu uma sumida. Aí fiquei só eu andando. Melhor. Mas vou te falar uma coisa: É muito triste acordar e não ter alguém do seu lado pra dar bom dia, pra falar das suas angústias”

Passamos numa distribuidora de água perto do metrô Paraíso.
“Chegaí quero cumprimentar Portuga/Tortuga” (tive a impressão que ele chamava cada vez de uma coisa) “É o dono da distribuidora, às vezes me arruma uns bicos de entregador”
Lá dentro o Tortuga/Portuga está mexendo num computador e entendo como o Cadu consegue acessar seu e-mail.
Ele pede pro Portuga/Tortuga confirmar pra mim que eram um grupo grande, mais de 20 pessoas e que viviam bem. Pergunta se ele tem visto o Samuel (“Tava dormindo aí na porta outro dia”) e saímos.

Ele comenta da entrevista que deu quando foram atacados em junho.
“O repórter ficou surpreso quando conversamos. Ele falou que não imaginava que tinha gente como eu na rua. Eu falei: Não tem aquele programa que diz vida inteligente na madrugada? Pois, é tem vida inteligente na rua.” 

Começa a chegar perto da hora da nossa despedida.
“Cara, joguei fora seu telefone. Não queria me sentir dependente. Prefiro deixar que a vida faça a gente se trombar de novo.”
Entendo.

Entramos no metrô (vou pagar uma passagem pra ele até o Jabaquara, de onde ele vai voltar catando cobre)

“Uma última coisa. Quando você encontrar um morador de rua, duas coisas:
1º tenha medo. Tem muita maluco por aí.
2° se você ver uma brechinha de humano, vai nessa brecha e rasga isso que pode sair um Cadu de dentro.”

Nos abraçamos.

“Se cuida.”
Se cuida.