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23.1.12

Vida Inteligente - Parte II


Hotel.
Nem lembro mais que cidade, foram muitas.
Toca meu celular.
Chamada a cobrar. Para aceitá-la, continue na linha após a identificação.
“Cauê? Aqui é um morador de rua, não sei se você se lembra do Cadu?”
Claro camarada, diga lá.
“Velho, eu queria saber se você ou seu amigo tem um tênis velho pra me arranjar. É que eu decidi que vou pra Ubatuba trabalhar num quiosque de um amigo na virada e vou ter que andar pra caramba pra chegar lá.”

Acho que não falei no outro texto: no verso do papel onde anotei o endereço da ocupação da Prestes Maia deixei meu telefone.
Ele tinha falado: “Se eu ligar, vai ser a cobrar!”

Combinamos de nos encontrar segunda-feira no metrô São Joaquim, 12h. Ele disse que estaria por ali para almoçar num albergue da prefeitura.

Quando nos encontramos ele carrega um E.V.A. fino enrolado com uns fios de cobre, com um cobertor e uma blusa dentro. (“O cara na rua, quando tem uma blusa, é o cara mais feliz do mundo. Já quase morri de hipotermia.”)

Agradece muito pelo tênis (levei também umas meias).
Está bem mais sossegado do que em nosso último encontro.
“Cara, me desculpa por eu estar bêbado naquele dia, eu não tenho essa hábito”.
Sossega cara, imaginei que você tava precisando.

Vamos andando, ele fala que não conseguiu a senha pra almoçar lá, mas quer me levar pra conhecer o lugar. Pergunto se já acabaram as senhas, tão “cedo”. “Se você não chega até umas 7h da manhã você não consegue, vem muita gente”.

No caminho passamos por um morador de rua, meio transtornado, com um pedaço de pau na mão.
“O que um cara desses quer, né? Fazer merda. O triste é que todo mundo pega um cara desse de exemplo pra falar do morador de rua. Mas fica sossegado, ninguém vai fazer nada contigo enquanto cê tiver comigo”

Vamos pra uma ponte ali perto do metrô.
Sobre a ponte, bem no meio, uma escadinha levando pra dentro da ponte.
Descendo a escada há uma porta com uma placa. “Centro de Acolhimento de Adultos”, símbolo da prefeitura e tal.
É bem surreal. Eu já tinha passado sobre essa ponte e nunca tinha reparado nessa entrada. A sensação é de que vou entrar no mercado goblin, escondido às vistas de todos.
Pra entrar comigo e sem senha o Cadu passa um conversa no segurança/porteiro, que já o conhece.
Dentro dessa ponte, um salão grande com umas 50 pessoas comendo em mesas e andando, não consigo apreender muito, estou ainda meio surpreso com a “passagem secreta” pela qual passei. Ficamos alguns segundos na entrada e ele logo fala pra sairmos.

Falo que vou pagar um almoço pra gente,
Vamos subindo em direção a vergueiro, achamos um restaurante/padaria com PF, pedimos.

“Eu to precisando me afastar um pouco disso aqui, de São Paulo. Trombei uns skinheads outro dia, tacaram um pedra em mim do outro lado da rua, mas consegui enrolar eles no papo, disse que sou nacionalista e tal, que por mim virava careca também, aí vazei”
“Tá muito perigoso ficar por aqui. Sorte que não trombei um dos caras da outra vez, por que ficaram um tempo me caçando.”
“To cansado de lutar pela revolução social sozinho. Aí eu penso: vou deixar o cabelo e barba crescer e vou viver loucão, que nem uns que tem por aí. Não. Melhor sumir um pouco, tomar um ar. Lá em Ubatuba tem esse amigo que tem um quiosque e precisa de gente pro ano novo. Aí eu junto forças, pra voltar. Vou voltar a estudar, fiz minha matrícula num supletivo.”

Papo vai, papo vêm, falo pra ele que sou ator. Ele diz que tá surpreso com quantos “teatros” ele tem visto na rua ultimamente. Falo da lei de fomento, da quantidade de grupos em Sampa.
“Todo corpo tem uma alma, e o teatro podia ser a alma da revolução!”
“Eu queria fazer uma peça que fizesse as pessoas conversarem depois, sobre como o mundo pode ser diferente.”
Falo pra ele sobre Brecht (“Por que você não falou do Boal?” me questionaram quando contei essa história. Burrada minha), sobre as peças didáticas.
“Cara, não é a primeira vez que converso com alguém que estudou e falam que alguém já realizou minhas idéias. É porque o mundo pensa parecido. Em todo canto tem alguém que percebe como são as coisas e pensa em como mudar, e são as mesmas soluções.”
“Eu tinha um caderno com muita coisa escrita, mas até isso o policial do Limpeza Urbana me tomou, junto com meu carrinho.”

Falamos sobre os skinheads. Cabeças que querem se expressar, muita energia pra gastar, mas mal direcionada.
“Eu tentei ser pastor, assistente social, diversas coisas pra poder ajudar a encaminhar as pessoas, mas quando eu vejo algo errado eu falo, e aí os caras que mandam não me querem por perto. E eu perco a vontade de estar num lugar onde não querem melhorar.”

Ele come metade da comida e pede pra embrulhar o resto. (“É bom garantir a próxima refeição, né”)

Seguimos andando, passamos pelo Centro Cultural e ele me conta que era freqüentador, junto com a galera que morava na rua com ele. Ele me mostra um lugar onde a galera dormia ali perto, super escondido.
Dentro desse espaço (um vão entre um canteiro e um prédio) alguns colchões e cobertores. “Sempre tem alguém que vem pra cá à noite, dá pra deixar suas coisas que ninguém mexe. O problema é que o Limpeza Urbana descobriu o lugar, então às vezes eles fazem uma patrulha e levam tudo”
Outra surpresa, esse lugar enorme, escondido das vistas de todos. Uma brecha no meio da realidade do cidadão comum. “Se você conhecer mais alguém que tá na rua e não tem onde ficar, se ele for de bom coração, fala pra ele ficar aqui”

Ele fala sobre como eles eram felizes, juntos na rua. Como havia uma verdadeira comunhão. Quando todos tinham tão pouco, mas o fato de compartilharem fazia com que um pouquinho virasse muito.

Uma vez, eles estavam conversando ao fazer uma janta (“dessa vez tinha quase trinta pessoas”), com as panelas e fogareiros improvisados, quando um “mendigão, eremita mesmo” que nunca falava nada e só de vez em quando se juntava com eles, começou a gritar “O amor! Ninguém se ama mais!”

“É real. As pessoas não amam umas as outras. Compartilhar é a coisa mais importante do mundo.”

“Mas eu comecei a fazer mal pras pessoas, se eu não tivesse juntado todo mundo não tínhamos sido atacados”
Não se culpa cara.
“Eu sei, mas foi melhor se separar. Eu e o Samuel continuamos andando juntos, mas ele tem esses problemas com drogas, fica paranóico e era muito egoísta, se tinha um suco, só dividia comigo, não com os outros. Mas aí ele ficou bravo comigo também, deu uma sumida. Aí fiquei só eu andando. Melhor. Mas vou te falar uma coisa: É muito triste acordar e não ter alguém do seu lado pra dar bom dia, pra falar das suas angústias”

Passamos numa distribuidora de água perto do metrô Paraíso.
“Chegaí quero cumprimentar Portuga/Tortuga” (tive a impressão que ele chamava cada vez de uma coisa) “É o dono da distribuidora, às vezes me arruma uns bicos de entregador”
Lá dentro o Tortuga/Portuga está mexendo num computador e entendo como o Cadu consegue acessar seu e-mail.
Ele pede pro Portuga/Tortuga confirmar pra mim que eram um grupo grande, mais de 20 pessoas e que viviam bem. Pergunta se ele tem visto o Samuel (“Tava dormindo aí na porta outro dia”) e saímos.

Ele comenta da entrevista que deu quando foram atacados em junho.
“O repórter ficou surpreso quando conversamos. Ele falou que não imaginava que tinha gente como eu na rua. Eu falei: Não tem aquele programa que diz vida inteligente na madrugada? Pois, é tem vida inteligente na rua.” 

Começa a chegar perto da hora da nossa despedida.
“Cara, joguei fora seu telefone. Não queria me sentir dependente. Prefiro deixar que a vida faça a gente se trombar de novo.”
Entendo.

Entramos no metrô (vou pagar uma passagem pra ele até o Jabaquara, de onde ele vai voltar catando cobre)

“Uma última coisa. Quando você encontrar um morador de rua, duas coisas:
1º tenha medo. Tem muita maluco por aí.
2° se você ver uma brechinha de humano, vai nessa brecha e rasga isso que pode sair um Cadu de dentro.”

Nos abraçamos.

“Se cuida.”
Se cuida.