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15.6.11

1.

Tons de cinza.
Mais para o lado da claridade. Cortados por uns relances desbotados de verde musgo.
Tráfego leve, abafado pelo vidro fechado. Água fervendo. O movimento suave do rabo da gata preta.
Otávio sentado na janela do apartamento.




Roupa de ficar em casa, do sétimo andar, olhando pra fora (mirando pra dentro) mal nota a tarde de domingo passando lá fora.
Intrigado com o roberto freire, levanta com o livro na mão, dedo médio marcando a página, e começa a caminhar com um passo meio torto (de quem ficou sentado tempo demais) por sobre livros, mesa de centro, papéis, desviando do sofá.

A gata acompanha com olhos amarelos e preguiçosos, a travessia.

Chegando até a caixa de feira no canto da sala, onde estão os lp’s herdados do tio, ele abaixa, fuça por algum tempo até achar o vinil duplo procurado. 
Com o indicador da mão que segura o livro corre a lista de músicas até achar: disco 2, lado a, 4ª faixa.
Bate no botão do toca discos. Abre tampa.
Agulha no vinil.

O seu amor
Ame-o e deixe-o
livre para amar

O seu amor 
Ame-o e deixe-o  
ir aonde quiser

O seu amor
Ame-o e deixe-o brincar
Ame-o e deixe-o correr
Ame-o e deixe-o cansar
Ame-o e deixe-o dormir em paz

O seu amor
Ame-o e deixe-o
ser o que ele é

Escuta tudo em pé. Encarando o disco girar. 
Não o agrada muito o andamento da música.
Mesmo assim, abre o livro. Repassa a análise: “através de um jogo inteligente e preciso de linguagem, faz confundir o seu amor (objeto) com o seu amor (sentimento)”

Fecha o livro olha pra janela.
As palavras dos doces bárbaros rebatendo na cabeça com as do roberto.

Re-lê na contracapa:
“Declaração do amante anarquista:
Porque eu te amo, tu não precisas de mim. Porque tu me amas, eu não preciso de ti. No amor, jamais nos deixamos completar. Somos, um para o outro, deliciosamente desnecessários.”
Já leu essa frase, dois anos atrás e havia feito todo sentido do mundo.
Relembra com o corpo sensações, cheiros, sorrisos, pele.


Sente o roçar da gata passando entre as pernas.

Lembra que esqueceu da água no fogo.
Se desvencilha desse paradoxo e corre pra cozinha, desliga o fogão, vê que metade da água evaporou.

Mesmo assim, despeja a água pouca na xícara que já havia sido preparada com dois saquinhos de chá de erva doce.

Põe a chaleira na pia. Volta à sala, xícara sendo assoprada numa mão, livro na outra, vai se acomodando na janela. Senta. A gata deita enrolada na sua frente.
Ele, com a sensação de outra pele registrada no peito.
Volta a olhar pela janela.
Sopra o pouco chá, faz carinho na gata.

É.
Vamos nós.