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26.1.11

Dos rituais

1.
   É... eu gosto de rituais.

   Não da repetição autômata de gestos, maneiras e palavras.
   Gosto quando eles fazem sentido. Ok, “fazer sentido” é relativo. Vou falar então do rio da minha aldeia e ver no que dá.

   Ritual. Do latim “ritualis” = “relativo a cerimônias religiosas” . Aí tem aquele velho papo de “religião” vem de “religar”, certo? Um ritual tem que ser um trampolim se para chegar a um grande prazer/satisfação, ao se reencontrar algo importante.
   E aí, esse tal  “prazer” é outro assunto cabeludo. Já diria o nosso velho camarada Brecht:
“(...) o teatro pode proporcionar prazeres fracos (simples) e prazeres intensos (complexos). Os últimos surgem-nos nas grandes obras dramáticas e desenvolvem-se até alcançarem um apogeu, do mesmo modo que o ato sexual, por exemplo, alcança sua plenitude no amor; são mais diversificados, mais ricos, em poder de intervenção, mais contraditórios e de consequências mais decisivas”
   Só pra utilizar a metáfora do sexo (como me convém): acho que estamos transformando nossos rituais em  “rapidinhas”, achando que estamos abalando. 
   Exemplo: Eu “fugi” da minha festa de formatura da faculdade, que foi feita no molde vigente de baladinha. Eu fui na festa (note que o verbo “fugir” estava entre aspas, ok?), como se fosse um convidado, pra curtir meus amigos, mas não paguei a festa, não tinha mesa, albúm ou qualquer outro cacareco. E não chamei ninguém.
   Eu me diverti lá, mas não me parecia fazer sentido algum gastar uma puta grana pra fazer meus pais e, quem sabe, minhas irmãs e alguma tia ficarem umas 6 horas num salão, vendo eu e e meus amigos enchendo a cara ao som de alguma banda tocando jota quest e chiclete com banana, comendo uns canapés. Algumas pessoas argumentavam:  “Nossos pais merecem essa comemoração” e eu ficava meio triste, pensando “Na real, eles merecem algo melhor.”
   Mas qualéquié essa tal coisa melhor? Sei lá, mas acho que tem que ser algo que se aproxime mais do tal do “prazer intenso” que o Brecht fala, que se aproxime mais do amor.

2.
   No último domingo fui a um chá de bebê/sarau. Os pais em questão, não queriam o kit clássico de pintar a barriga da mãe e fazer umas gincanas. A proposta era a seguinte: Os convidados poderiam levar “contos, cantos ou encantos” para esse encontro, cujo objetivo continuava sendo celebrar a chegada do bebê.
   Nada de presentes elaborados para o enxoval. Os convidados deviam levar pacotes de fraldas (um troço que vai que nem água –  eu, que tive que trocar muita fralda da minha irmãzinha 17 anos mais nova, sei bem).  
   Alguns recitaram histórias e poemas, outros cantaram (eu fiz uma música pro casal e pro futuro rebento, um dia desses posto aqui). Na parte de “encantos”, uma pessoa propôs um ritual em que cada um deveria entregar aos pais do bebê uma medalinha ou pingente com algum significado importante para si ( e que já havia sido solicitada antes do evento). O ato de entrega era realizado enquanto a pessoa dizia sua linhagem materna (“Eu Cauê, filho de Margareth, neto de Maria Amândia”) e declarava o que desejava a família que se formava. As medalhas eram colocadas em um cordão, que deveria ser carregado pela mãe, até o parto.
   E era isso.  Isso foi uma pequena parte de tudo que aconteceu ( o chá foi das 16h às 22h, mais ou menos). Não tô dizendo que o simples fato de fazer isso e não pintar a barriga tenha tornado a coisa transcendental, nem to dizendo que pintar a barriga não seja divertido.
   Mas ter experimentado uma forma nova de celebrar o nascimento fez eu reavaliar muitas coisas. Desde certas formas  “tradicionais” de celebração, até meu desejo de ser pai , e como eu quero criar meus filhos, o que acho importante transmitir.  E os futuros pais, ao olhar nos olhos de cada um que vinha lhes desejar alegrias, ou embalar com cantos ou contos sua celebração,  demonstravam uma imensa alegria ao receber tanto carinho nesse momento decisivo. Com certeza, sua dedicação em realizar algo diferente resultou em um prazer intenso.  Hoje, três dias depois, os sorrisos deles continuam enormes e eles ainda falam disso o tempo todo!
   Algo parecido aconteceu em um casamento que fui ano passado. Não foi realizado em um templo mas foi certamente muito religioso. Muitas coisas que foram parar no tradicional casamento católico estavam lá: As alianças, o noivo espera a noiva no salão etc...
   Algumas diferenças: os convidados haviam sido previamente divididos em grupos como “ a turma da faculdade”, “amigos da cidade onde o casal morava”, “irmãos dele” etc...), e cada grupo deveria pensar em “Bençãos” que iriam dar ao casal, na forma de palavras, cantos, gestos.  Tinha a “benção da fertilidade”, a “benção do amor” e por aí vai.
   Os votos dos noivos também deixaram no chinelo qualquer “Eu, fulano de tal, declaro te amar e respeitar... blábláblá... até que a morte nos separe, amém”. Eles disseram palavras próprias, referentes a trajetória de ambos, e que apenas um poderia dizer ao outro ( e ainda assim eram muito universais). Não preciso nem falar o quanto esse casamento me fez e me faz pensar sobre relações, felicidade, encontros...

3.
   Tratamos a certos rituais como se fossemos genéticamente programados para sentir prazer com o formato tradicional deles, e com isso não nos deixamos surpreender ou abalar com novas formas de pensar e sentir.
   É que é preciso esforço e disposição pra fazer uma transformação em um ritual “tradicional”, como casamento e tal. Engraçado que ao fazer isso, dá pra chegar muito mais perto do que considero a essência desse tipo de celebração, e muito mais perto dos elementos humanos que tornaram esses rituais "tradicionais".
   
   Ok, já to chutando cachorro morto, certo?
   O que quero, é que desde pequenos rituais como um jantar com os amigos até grandes celebrações coletivas (o réveillon, quem sabe...) possam ser  “mais diversificados, mais ricos, em poder de intervenção, mais contraditórios e de consequências mais decisivas”.      Sem precisar ter medo desses palavrões.